Seria bom se cada um escolhesse sua memória. Escolher pais, avós tribo, povo etc. Mas não parece ser assim. As parcas ou o carma nos meteram dormentes na matéria. Despertamos e não sabemos dos programas, ou vírus que carregam o nosso HD. A memória da espécie, a herança genética que define em cada um, a cor da pele, dos olhos, o câncer, o Hitler, o Bush, ou Gandhi. Tudo pode vir no pacote inicial. Até a ilusão da poesia. Imagino, então, que ninguém é dono de sua memória. Guarda apenas dias sobre a terra. Não pode cortar nada. Viemos de muitos lugares. De muitas mães e muitos pais. Quinhentos anos contam a história da América, para os cristãos conquistadores. Séculos de ciência, músicas, crença, soterradas pela força dominante de espanhóis, portugueses, ingleses, holandeses e franceses. O maior genocídio de que o homem foi capaz. Não se dirigiu a um povo, a uma fé, a uma etnia. Desabou sobre um continente com tudo que havia nele. A Europa do século XIII e XIV vivia o sofrimento das guerras, da reforma protestante, a inquisição, a pobreza. Restava usar a tecnologia de que dispunha para empurrar seu sofrimento e avareza pelos mares. Armas de ferro e fogo, cavalos e armaduras. Tudo com a bênção da cristandade: ampliar as fronteiras da fé e do império. As armas, guerreiros e cavalos pisoteavam índios e os sacerdotes ungiam a matança, catequizavam, batizavam. Os primeiros tiravam a vida e a liberdade do corpo, os últimos seqüestravam para Roma as almas, os nomes, as crenças, queimavam códices, e introduziam o mais belo auxiliar que puderam, o Diabo. E em seu nome exorcizou, expurgou queimou a cultura dos povos da América. Nós, que caminhamos pelas ruas de Goiânia, por esses ermos para cá de Tordesilhas. Não pudemos continuar caingangues, xavantes, caiapós, carajás, cafres, nagôs ou cambindas. Nem europeus. Nossos bisavós, degredados, aventureiros, bandeirantes, tinham atrás de si coroas que diziam: avançar, escravizar, tomar, queremos nosso quinto. De outro lado, a clerigada instigando: queremos as almas, se possível com corpo, queremos escravos, queremos o ouro para nossos altares, os dízimos dos impostos de Deus. Maré bárbara. Na tsunami nos misturamos todos. Não joguemos fora Calabar, Silvério dos Reis, Domingos Jorge Velho, Anhanguera, Sepé-Tiaraju, Apoena, Raoni, Tibiriçá, os que devoraram o bispo Sardinha, ou Lampião. Não deixemos de lado Zumbi, Balaio, Bento Gonçalves, D. João VI, os Pedros, nem todos os escravos, índios, vivos ou mortos. Porque todos seguem conosco. Na nossa carne, no nosso sangue, nas nossas danças, músicas e crenças. São nossos parentes. É com eles que vamos para o futuro. É também com chegantes, italianos, japoneses, chineses, coreanos, russos, suecos, alemães que vamos dando forma a esta nação que pode ensinar a tolerância, a convivência e algum sonho de paz para a humanidade. Deixemos o bandeirante na memória. Se o vereador Rusemberg ponderar, poderá retirar seu projeto e poupar a Câmara de Goiânia do vexame de ter que votar esta infeliz matéria.
Crônica Publicada no Diário da Manhã do dia 29.02.08
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