Como
sarna, o celular alastra-se. Mais uma inquietação. Interrompe conversa.
Atrapalha enterro. Assusta a missa. Apêndice incômodo. Tudo no corpo tem seu
lugar: chapéu para cabeça; sapato para os pés; luvas para as mãos. Mas celular
não é coisa humana. Incômodo das prestadoras que amarram o vivente em suas
contas e não soltam mais. Humano não foi feito para celular. Não pode ser
pendurado nas orelhas. Não é sexy. Não é viril. Mas não consegui ficar fora da
besteira geral. Adquiri um. Já são três ou quatro. Estão sempre lançando novos
e tornando os velhos imprestáveis. Vejam o que me aconteceu. Ia à Feira de
domingo na Vila Nova. Já fui feirante. Até hoje dói uma escoliose de carregar,
sobre a coluna ainda tenra, caixas de tomate, mandioca, inhames... As mais
pesadas do comércio de verduras. Não sei pra que celular na feira. Só para a
mulher ficar ligando e acrescentando itens na lista de compras. Olha, não
esqueça o piqui, a gueroba... No meio dos esbarrões, perdi o maldito aparelho.
Só dei conta quando abria as sacolas. Alisava a cintura, apalpava os bolsos.
Nada. Exalou-se o intruso já feito de alguma amizade. Aflito, comecei a
telefonar para o meu número. Lá pras duas da tarde, uma voz respondeu irritada:
- Quer parar de me incomodar? Estou trabalhando e você não para de telefonar!
Respondi humilde ao arrogante telefonista: - Amigo, você encontrou meu celular.
O único jeito é chamar, não? Do outro lado, repreensões: - Escuta moço. Eu
achei o seu celular. Não roubei. Não sou ladrão. Sou evangélico. Foi Deus que
pôs ele no meu caminho. Só entrego se me der um dinheiro. Ponderei, diante da
extorsão, que perdera o tal celular na feira, que poderia dar uma gratificação.
Dissesse-me onde encontrá-lo para resgatar o miserável. Do outro lado, a voz
impôs condições: - Agora não posso. Estou em Anápolis. Se quiser,
posso entregar à noite, na Praça da Bíblia. Mas são cinqüenta pratas. E não
precisa ficar ligando. Ás oito da noite eu te ligo pra marcar o lugar da
entrega. Após o diálogo nojento me aquietei. Liguei para a prestadora e pedi o
bloqueio da linha. Já tinha me esquecido da porcaria, quando o cidadão me
chama, por volta de sete e meia da noite, instruindo: - Não te falei que não
sou ladrão? Vou entregar seu celular. Esteja na Praça da Bíblia em dez minutos.
Estou pegando o ônibus para Caldazinha. Como não sabia este endereço, pedi que
ficasse no Frango Gostosão. Afinal, ali é mais claro. Saí correndo. Dez minutos...
Bordejava a praça, Tânia ao volante e eu perquirindo sombras. Na luz do frango
assado, Gostosão vejo uma figura curvada ao peso de um saco sujo. Gritava e
gesticulava. Estou aqui. Sou o Romualdo. Estou com seu celular. Já estava
íntimo. Veio sorrindo. Entreguei-lhe uma nota de cinqüenta, passou-me o
aparelho e ainda me deixou uma admoestação severa: - Por que você foi bloquear
a linha? Não confia em mim não? Já disse que não sou ladrão. Sou evangélico.
Agradeci. Peguei o celular. E resmunguei: - Não se esqueça do dízimo do pastor!
Texto
do Livro Mínimo Olhar.
Nenhum comentário:
Postar um comentário