domingo, 27 de janeiro de 2019

CANÇÃO DA CHUVA CONSTANTE.


  

Chuva de ontens e imemoriais infâncias,
de auroras ruivas e  mundos  pubescentes.
Varando raízes de expectação, frementes,
sem portos, amuradas ou distâncias.
Toda a noite e o dia, incansavelmente,
drenou dos céus à exasperada secura,
mananciais contidos de mel e de fartura,
derramando-se em gozo  fecundo de semente.
Vem a chuva! Serenamente deu ao campo
As esperanças dos bichos, as revoadas...
E foi tanto o milagre de sonhar, e santo,
que as espigas novas reclinam decepadas.
E leve, levíssima, a maternal chuvinha,
acariciou, como sabe amaciar a pluma,
a áspera terra, a malicia, a urze mais daninha
coberta de orvalho, adocicada névoa e bruma.
Caiu em homilia branda, chuva e glória
Intimando os seres vacilantes às retomadas
do marchar da vida em sinuosas caravanas.
Arrebanhando brotos e espigas dispersadas
nas terras largas, ermos cerros e nas savanas.
Chuva que se encorpa na serra sem nome,
Sem dono, sem nenhuma reserva de mercado.
A propicia chuva, notívaga  e insone
sabe a preclaro mel e leite derramado.
Sem prever avenças, sem tenças ou tributos,
quer ser a chuva do dia, da estação , da flor
Rasgada de seus ínvios seios e ocultos.
Na parição da terra, tão ferida. Suma dor!
Choverá muito sobre o crente e o ímpio,
Como se fosse de Deus desértico maná
Molhará as barbas do potentado olímpio
E dos mais tristes e mais fracos molhará.
Não leva, à mingua de ser sempre generosa,
A culpa de negar-se o pão ao irmão,
Nem de sede secar-se carne e  a rosa rosa
Dando ao garrote, o digno de perdão.

                                               Terras  Utopia  , 13/11/2016

A CARA DO NATAL




                                                    Aidenor Aires

Nestes dias, procuro fechar os ouvidos e os olhos aos risos e brilhos natalinos. Com o tempo, fui abandonando as crenças e a mitologia. Para mim, os deuses há muito se acabaram. Restam lembranças e alguns atavismos em cultos interesseiros e vazios. Para mim, só o que pensa sente, sofre e morre tem influência na vida e no mundo. Fui aprendendo que não há nada na terra que tenha sido construído por alguma inteligência ou determinação exterior ao mundo. Lição do poeta Lucrécio e de pensadores modernos que trilham os caminhos do humanismo. Natal, dizia Carmo Bernardes, é festa de cidade.  Realmente, concluo, que nos meus tempos de menino beradeiro dos barrancos do Rio Branco, oeste da Bahia, pouco me lembro desta festa, hoje tão mirabolante. Havia, é certo, lapinhas, talvez novena, ou outros ritos sertanejos, cópias do relambório esotérico do “latinorum” romano. Para o povo da roça, era época do milho verde, das pamonhas, do feijão de corda, dos frangos gordos e belos leitões. Mais do que devoção, salvo para as pessoas religiosas, era tempo de fartura. Lembrava mais as festas pagãs do solstício de verão, que a mídia e A dialética papal não conseguiram exterminar. Esse paganismo foi substituído por novas crenças, da globalização, das mídias ruidosas e das divindades mercadológicas. Vai cessando a invocação da manjedoura construída no imaginário cristão com seus animaizinhos, um berço de palha, reis e seres improváveis. Nos festejos da roça meninos não participavam. Não havia presentes. Quando muito, brinquedos feitos à mão. Lembro-me de bodoques, carrinhos de madeira, piões, fincas, berra bois, bola de leite de mangaba, recheada com ar de bexiga de porco. Nada de roupa nova, calçados e outros aguinaldos, hoje derramados sobre os desejos da meninada e exibicionismo dos pais. “O Zezé quis um tablet” Rosinha um celular, Maria uma boneca com pipiu ou perereca. É bom para as novas políticas de gênero. Já estão quase na idade de se decidirem pela opção sexual a ser gravada no registro de nascimento, que ainda está com um espaço “indefinido”.  A infância daqueles meninos não passava atoa. Poucos tinham acesso à escola e passavam os dias em trabalhos de ajuda aos pais. Dormiam em catres, um ao lado do outro. Não tinham privada patente, comiam o que a terra dava. Nunca recebiam salários e tinham pouco tempo para as atividades lúdica, depois que cumprissem as obrigações familiares. Talvez varrer o quintal, dar água ás criações da casa, capinar um eito de arroz. Depois de um prato de feijão pagão, um pedaço de rapadura que insuflava nas carnes e nos ossinhos tenros toda a sustança da vida. Verdadeiro trabalho escravo. Não era censurável porque assim viveram seus pais e nunca padeceram fome, nem falta de liberdade, nem miséria moral. Apreciam, isto sim, lições de amor à terra, à vida e a solidariedade. Natal, para mim, pouco importa. Dele recolho apenas algum sorriso, um abraço, um beijo da pobre gente esquecida, por um momento, de suas angústias, purgando-as no vinho, na cerveja, nos leitões, perus e rabanadas opíparas. Não precisam olhar lá fora. Afinal, aqui há tanta beleza, tanta música. Desfrutam com quem não tem futuro, porque imaginar, sonhar, ter fé não é construir. Falta nesses obreiros sentimentos humanos. Operam por consentimentos dos deuses que não estão na terra. Estão distantes e altos ignorando as alegrias ou misérias da terra. O Natal, para esta gente é um carnaval de máscaras místicas, caras piedosas e pio gestual. Recordam seus mortos e os guardam em algum paraíso, onde estão congelados, não padecem fome nem tristeza. Para mim, no correr da vida, fui descrendo desse imaginário, mitos fantasias. Respeito e honro quem assim crê. Afinal, tudo cabe dentro do homem, inclusive a crença em milagres. Retorno àquele tempo luminoso da infância sem censuras, aos passarinhos, às farturas da estação, à minha gente que nasceu, sentiu e sofreu, quase distante do comércio da fé e da tirania dos deuses.



Sítio Pachamama, Solstício de Verão de 2017