ZUT – UMA AVENTURA DA LINGUAGEM
Aidenor Aires*
Há muito tempo venho acompanhando a
aventura poética de Wilmar Silva ou Djami Sezostre. Para ler a poesia de
Sezostre não se pode olhar parado, a partir de um ponto no alto, embaixo ou
dentro. Seu (não) verbo instaura uma cena de signos multívocos, onde se
amassam, se entranham, sem cercas ou horizontes.
Nada que aprisiona, tudo que liberta.
Em seu trabalho de estranheza singular, uma torrente que captura a totalidade
dos sentidos, sem conter em cada um deles sua plenitude comunicativa. Em ZUT o
poeta exorciza o discurso, a dicção e segue construindo (destruindo) o que
sempre foi belo e consentido.
Seu campo de exercício é o processo
genético da linguagem. Inconformado com as limitações expressivas das palavras
com sua carga de sentidos com/sentidos, ousa em desafios à ordem e à semântica.
Recria seu próprio, silabário, vocabulário, fremente e instável, aventurando-se
num mergulho até os embriões da linguagem.
Ao fragmentar o sacro edifício das
palavras, talvez busque o momento primordial do silêncio, dos grunhidos, dos
uivos e esgares. Visita a primitiva sintaxe de silêncio, onde dormitavam os
signos primais dos gestos, dos gungunados, dos silvados, dos sons emitidos com
dor, alegria e espanto, aprisionados em bocas rudes.
Sob este aspecto seu texto é pura
ousadia de formas quebradas e convoca o leitor de percepção plural a juntar
fragmentos, amealhar possibilidades múltiplas de significações, participando do
artesanato libertário que manipula descobertas verbais, interfaces idiomáticas,
oferece sugestivos jogos e cativa os sentidos do leitor em vertiginosa viagem
fractal.
Muitas abordagens se poderiam armar
no só edifício armazenado em seu grafismo poético. Ultrapassa a semântica
unívoca ou meramente metafórica para inventar espaços, deslizamentos e
ambiguidades de oráculo. ZUT não é somente um campo de exercício dramático e
lúcido do poeta. É uma dádiva à consciência criativa do
leitor/mirador/ouvinte/tátil e saboreante.
A abordagem do texto que, em dado
momento, pode se denominar leitura, não admite passividade. Todos os sentidos,
mais a imaginação e a inteligência, são cativos para extrair sentidos, conferir
significados, abandonando tudo o que sabia da poesia e da linguagem. Há
momentos em que se quer ser criança e jubilar-se com sons inaugurais, gozar as
primeiras silabas no prazer de executar o inocente instrumento da fala.
Não se pode ler ZUT para conhecer um
poeta e sua linguagem. Aqui tudo é inaugural, é desafiante e múltiplo.
Infinitos poetas rabiscam papiros, tablas e écrans quando Djami Sezostre
entrega sua missiva impessoal dirigida a uma geografia ainda por descobrir-se.
Se o leitor pode atravessar a treda
floresta da linguagem escrita, precisará de renovadas ferramentas para divisar
o lado vertiginoso de sua performance corporal, onde Sezostre se entrega ao
gestual, ao clamor cardíaco, à simiologia eloquente, à voz que entoa extreme as
fronteiras entre o canto e a fala, entre o silêncio e o vagido.
Na leitura sonora dos poemas Sezostre
canta orfeônico, gregoriano e mântrico. Seguir sua arquitetura linguística nos
aproxima de tantas vocalizações caras, felizes ou doloridas do ser humano.
Difícil é comentar um aspecto em separado desse poeta múltiplo. A possibilidade
compreensiva de seu trabalho só pode ser defrontada em sua complexa atuação de
performer original.
Seu texto/contexto não invoca apenas
a dimensão da linguagem perceptível, nem sua humanidade inclusa,
palpitante. É preciso acolher sua
construção imagética, onde o poeta se dá em vocabulário carnal, o corpo e a
alma, capaz de pertencer panteisticamente a um universo de árvores feridas,
bichos sofridos, terra e água. Areias, galhos e animais se misturam a uma
herança de memória do chão, da casa, da família.
A arte de Sezostre cresce em sua
expressão multitudinária. Tudo que digo, nesta breve e simples abordagem, nada
diz dele. Talvez todas as tentativas de recepção acabem por ser uma traição. O
expectador tem sempre a última palavra, sua liberdade de conhecer e sentir. Estou
certo de que ZUT reúne o mais alto acervo de sua invenção. Destaca-se como
desenho original na poesia brasileira, ecoando diferente das mais descoladas
experiências da linguagem.
Embora dono de tão ampla linguagem, de tão
inusitados recursos, de tão pungente clamor por comunicação e encontro, de uma
certa forma é uma voz que clama na multidão e no deserto e, com certeza, segue
cantando, indiferente e completo, como fala e canta, aos homens e ao mundo,
poesia.
*Aidenor Aires, poeta, de Riachão das
Neves, BA. Mora em Goiás, onde vive e escreve.
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