FLORES DO CERRADO
Aidenor Aires
Vida breve. Emoção roubada aos deuses. Padecem da dor
imensurável da eternidade, eles. Nós, os que vamos morrer, podemos saudar esses
lampejos, esses retalhos da permanência. Felizes de quase nada. Não digo do
poeta, faminto de dias e horizontes. Paro e contemplo a natureza generosa que
golpeia sem saber o rio do tempo, acendendo reflexos, cascatas, sombras, corpos
boiando e retalhados reflexos de céu e sol. Vaga permanência. Na sequidão
extensa do planalto, venham ver a sangria luminosa e exasperada da floração.
Nem meus olhos, nem meus sentimentos, nem meu possível coração e seus estigmas
pode suportar a abundância da beleza derramada na luminosa paleta do cerrado.
Chega a ser injustiça, ou divina covardia. Como suportar o ipê roxo, de mística
chaga, estender o seu quaresmal pálio sobre a mata decídua? Quer doer para além
dos olhos. Pobre e estreito olhar. Quer ficar, passageiro, denso na lembrança.
E quando vai espalhando no vento suas últimas pétalas bailarinas, parece
provocação, um desafio ao irmão de juba amarela que estraçalha em ouro o ar
pesado, o céu plúmbeo, ar do escaldado agosto. São apenas exemplares de luz
sobreviventes, escapos aos machados, às motosserras, aos tratores. Gritam suas
flores sobre tocos, leirões e arados, na ânsia de logo espalhar sementes que
aspirarão iludir a morte e germinar para improváveis florestas do futuro. E
mais que acenos agitados pelo vento geral, a intensidade amarela dessa florada,
especialmente, são gritos, esgares que mancham o cerrado numa agonia anunciada.
Fraquejo. Com toda minha escolaridade de pena e sofrimento coloco-me de joelhos
frente a esta divindade singela. Deploro e me ponho a carpir, não os que hoje
florescem, mas aqueles que não nascerão e não serão admitidos no dia possível
de florescer. Bastaria minha lágrima, meu suspirar de pobre palavra e muita
pena, não fosse a sucessão alvinitente das copas nevadas dos ipês brancos.
Benzem, angelicais e núbeis, cerros ásperos, cerrados avermelhados, chãos
calcinados de concreto e alcatrão. Apenas genuflexo, rente à terá, pode-se
olhar, chamar e recolher este esplendor de alvura, inconcebível em terra tão
sáfara de homens tão duros e amargos. Somente aí se esgota nossa sede de beleza
e encantamento. Seria necessário, para não esquecer, olhar apenas o chão de
avermelhado corpo, de desolada pele, de desertificado coração. Mas as árvores
que amam a morte, porque sangram, parturientes, para o advento das sementes, e
não confiam nas promessas dos verões e das primaveras, expõem suas estratégias
vitais. Somente quem acompanhou o clamor dessas árvores cerratenses pode
sentir, como um epílogo cantante da sinfonia vegetal, o estuar simultâneo da
flor carmim do cega-machado e aquelas desenhadas em cabeleiras de amarelo sépia
do feijão cru. Desapercebidas entre outras árvores, insignificantes durante
todo o ano na paisagem, num repente, exibem seu estandarte de flores, num
ritual que nasce e corre pelas seivas, desde as profundas raízes. Nelas não são
galhos, mais subterrâneos nervos e raízes que florescem. Pondero que essas flores são milagres
fugidios. Ambicioso, talvez egoísta, anseio estar aqui ainda no próximo agosto,
contradizendo a vocação de morte que escurece o mundo. Virei para celebrar esse
milagre estupendo que, descuidados, ímpios deuses deixaram, perdulários, se espalhar
em desperdício de luz pelo cerrado.
06/09/2017
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