sexta-feira, 13 de outubro de 2017

COMPANHIA






COMPANHEIRA
                            Aidenor Aires

A morte nunca me foi estranha. Sempre companheira, desde os dias da infância. Colheu meninos ainda verdes dos pomares nos dias pueris, ameaçou-me com engodos e doçuras, e foi protelando, ao longo dos dias sua fome por mim. Talvez sobejasse meu corpo magro, minha insípida carcaça alimentada a beiju de mandioca e leite de cabra. Foi me deixando passar como sombra imperceptível. Cuidou de outros mais importantes, com mais sustança e haveres. Deixando-me de lado, foi, seletiva, carregando gente de melhor ossatura, musculação e massa cerebral. Assim me poupou a dor suprema, aleijão da espécie humana. E foi me entregando, aos poucos, seu cálice amargo. Levou o pai, a mãe, as irmãzinhas lactentes, parentes, aderentes e muitos da fraternidade dos amigos. Até gente distante, feridos de desastres e tragédias, foram arrastados, doendo em secura a cacimba dos meus olhos, os mananciais de minha alma pobre. Insidiosamente, quase impalpável, a velha senhora de trágica elegância e ferino trato, foi erodindo com sua presença o vazio do meu corpo e a sombra bruxuleante nele embarcada. Sempre procurou se disfarçar com passos sorrateiros ou surpreender com golpes imprevistos. Todas as subtrações não viraram perdas. Saíram do mapa visível e passaram a habitar meus recessos ocultos de lembranças. Daí emergem nas horas auroreais, nos crepúsculos plúmbeos, nas noites feéricas para exultarem em suas vidas de sonhos e lembranças. Como aqueles habitantes do Hades, padecem de corpo e substância, e só podem existir no afeto e na memória, e só podem falar nos lábios dos vivos que carregam suas histórias. Hoje estou, mais uma vez, sob o lancinante golpe da Velha Senhora.  Desta vez, ela percorreu os planos do sul do Brasil, galgou a Cordilheira dos Andes, esfriou sua adaga nas alturas geladas e foi pousar na terra generosa de Melipilla, doce e sísmico Chile. Sem consideração pela ternura e pela beleza, arrastou meu amigo, poeta Jaime Romanini Gainza. Ainda pouco estivemos juntos, aí na Terra dos Quatro Espíritos, rincão das frutas, das vides, dos vinhos e dos sempre louvados lácteos. Desde Goiânia, onde veio com uma delegação de sua terra para um encontro cultural, até sua província, nos encontramos várias vezes. Foi presidente do ATENEO Francisco Gonzales, instituição longeva com importante atividade cultural. Em todos os eventos a que comparecemos em Melipilla, me admirava sempre sua atividade, entusiasmo, contrastando com um comportamento calmo, amistoso e acolhedor. Falava em tom sussurrante, baixo, como costumam falar os chilenos. A última vez que nos encontramos, quando já me preparava para sair rumo ao aeroporto, sou alertado pela recepcionista do hotel. Lá estava Romanini, com uma esplêndida garrafa de pisco que me entregou como homenagem e lembrança. Ela ainda está aqui. Quando resolver toma-la, sem dúvida, estarei invocando a presença amiga e generosa do poeta. Descendente de italianos, trazia de seus antepassados muitas influências e de vez em quando escapava para a terra de Dante, em reencontro com suas raízes europeias. Empresário e líder cultural, era sobretudo poeta. Publicou vários livros, entre eles: Imaginária, Babel e Desdibujado, além de outros títulos e contribuições em jornais e revistas. Competente no uso da palavra, sua temática ia das preocupações teológicas, como em Babel; e à estuância do amor, liricamente extasiado entre a afeição e a morte. Esta foi mais uma vez e em que Ela vai podando meus brotos e ramos, vai ferindo meus galhos, talvez para que me recorde que ela está por aí vigilante e à espreita. Se de um lado e apequena, de outro infla meus alforjes de memória, onde passa a morar agora também Jaime Romanini Gainza.  Para lembra-lo, transcrevo alguns versos seus, onde parece visionário na percepção antecipada da morte.



COMPAÑIA


Muerte que que vienes a quedarte.
Muerte que vienes com gélido abrazo,
Muerte de mirada oscura.
eterna compañera.
Cambia tu ceño adusto
por uma suave sonrisa.
Baña com ternura
lo que alcance tu mirada.
Muerte que vienes a quedarte,
haz mas fácil tu llegada,
No olvides que nuestra companhia
dura tu vida entera.

HÁ LLEGADO

Mis huesos pesados,
mis músculos rígidos,
mi corazón no late.
La espera há terminado...
Aún siento los pájaros,
El viento y el sol,
Pero mi vista ya no ve,
Mi corazón no late.
Sin embargo... estoy tranquilo,
El fin de mi largo caminho... há llegado.


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