A CARA DO NATAL
Aidenor Aires
Nestes dias, procuro fechar os ouvidos e os olhos aos risos e
brilhos natalinos. Com o tempo, fui abandonando as crenças e a mitologia. Para mim,
os deuses há muito se acabaram. Restam lembranças e alguns atavismos em cultos interesseiros
e vazios. Para mim, só o que pensa sente, sofre e morre tem influência na vida
e no mundo. Fui aprendendo que não há nada na terra que tenha sido construído
por alguma inteligência ou determinação exterior ao mundo. Lição do poeta
Lucrécio e de pensadores modernos que trilham os caminhos do humanismo. Natal,
dizia Carmo Bernardes, é festa de cidade. Realmente, concluo, que nos meus tempos de
menino beradeiro dos barrancos do Rio Branco, oeste da Bahia, pouco me lembro
desta festa, hoje tão mirabolante. Havia, é certo, lapinhas, talvez novena, ou outros
ritos sertanejos, cópias do relambório esotérico do “latinorum” romano. Para o
povo da roça, era época do milho verde, das pamonhas, do feijão de corda, dos
frangos gordos e belos leitões. Mais do que devoção, salvo para as pessoas
religiosas, era tempo de fartura. Lembrava mais as festas pagãs do solstício de
verão, que a mídia e A dialética papal não conseguiram exterminar. Esse
paganismo foi substituído por novas crenças, da globalização, das mídias
ruidosas e das divindades mercadológicas. Vai cessando a invocação da
manjedoura construída no imaginário cristão com seus animaizinhos, um berço de palha,
reis e seres improváveis. Nos festejos da roça meninos não participavam. Não havia
presentes. Quando muito, brinquedos feitos à mão. Lembro-me de bodoques, carrinhos
de madeira, piões, fincas, berra bois, bola de leite de mangaba, recheada com
ar de bexiga de porco. Nada de roupa nova, calçados e outros aguinaldos, hoje
derramados sobre os desejos da meninada e exibicionismo dos pais. “O Zezé quis
um tablet” Rosinha um celular, Maria uma boneca com pipiu ou perereca. É bom
para as novas políticas de gênero. Já estão quase na idade de se decidirem pela
opção sexual a ser gravada no registro de nascimento, que ainda está com um
espaço “indefinido”. A infância daqueles
meninos não passava atoa. Poucos tinham acesso à escola e passavam os dias em
trabalhos de ajuda aos pais. Dormiam em catres, um ao lado do outro. Não tinham
privada patente, comiam o que a terra dava. Nunca recebiam salários e tinham pouco
tempo para as atividades lúdica, depois que cumprissem as obrigações familiares.
Talvez varrer o quintal, dar água ás criações da casa, capinar um eito de arroz.
Depois de um prato de feijão pagão, um pedaço de rapadura que insuflava nas carnes
e nos ossinhos tenros toda a sustança da vida. Verdadeiro trabalho escravo. Não
era censurável porque assim viveram seus pais e nunca padeceram fome, nem falta
de liberdade, nem miséria moral. Apreciam, isto sim, lições de amor à terra, à
vida e a solidariedade. Natal, para mim, pouco importa. Dele recolho apenas
algum sorriso, um abraço, um beijo da pobre gente esquecida, por um momento, de
suas angústias, purgando-as no vinho, na cerveja, nos leitões, perus e
rabanadas opíparas. Não precisam olhar lá fora. Afinal, aqui há tanta beleza,
tanta música. Desfrutam com quem não tem futuro, porque imaginar, sonhar, ter
fé não é construir. Falta nesses obreiros sentimentos humanos. Operam por
consentimentos dos deuses que não estão na terra. Estão distantes e altos
ignorando as alegrias ou misérias da terra. O Natal, para esta gente é um
carnaval de máscaras místicas, caras piedosas e pio gestual. Recordam seus
mortos e os guardam em algum paraíso, onde estão congelados, não padecem fome
nem tristeza. Para mim, no correr da vida, fui descrendo desse imaginário, mitos
fantasias. Respeito e honro quem assim crê. Afinal, tudo cabe dentro do homem, inclusive
a crença em milagres. Retorno àquele tempo luminoso da infância sem censuras,
aos passarinhos, às farturas da estação, à minha gente que nasceu, sentiu e sofreu,
quase distante do comércio da fé e da tirania dos deuses.
Sítio Pachamama, Solstício
de Verão de 2017
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