DIÁRIO
TARDIO I
PEQUENA
PESTE
Sobre peste, deparei com uma na infância, isto é, quando era
menino, porque infância nunca conheci. Fui homem desde os seis anos, ou antes,
porque sendo o mais velho de uma récua de pai ausente, era chamado por todos de
“o homem da casa”. Tinha que ser forte, adulto, servir de exemplo. Perdão,
paciente leitor, isto é assunto aborrecido, piegas, talvez melhor tratado mais
tarde. Com licença. Daquela época, que não me parece longe, me recordo de uma
doença que apareceu pelos ermos onde vivíamos. As pessoas caíam de febre, com
toda espécie de mal estar, andadeiras e vômitos, iam enfraquecendo, se finando
e, opilados, em pouco se acabavam. Tinha eu lá meus sete ou oito anos, quando
caí em prostração daquela enfermidade. Acomodado em um catre de braços de
buriti. Tinha também um primo da minha idade na cama ao lado. Via minha mãe
indo de lá para cá, feito lançadeira, disfarçando para que eu não soubesse o
que acontecia. Perguntava pelo primo que ontem gemia na cama próxima, e para me
acalmar dizia que estava brincando lá fora. Porém a mim, não deixava brincar.
Também, mesmo que deixasse, meu corpo desmilinguido não encontrava forças para
atirar de bodoque, trepar nas mangueiras, pescar no riacho ou correr nos jogos
pueris daquele tempo. Me intrigava o gemido arrastado, a respiração em
roc-roc-roc do serrote traçando madeiras e abrindo tábuas. Aquilo era dia e
noite, porque, como soube depois, as tábuas eram para a construção de caixões.
Nas vizinhanças, muitos pereciam e demandavam um enterro cristão. Minha mãe,
sabendo dos perigos que aquela doença trazia e com o filho mais velho
prostrado, a tempo de ser engolido pela peste, procurava desesperada algum
socorro. Já utilizara todas as mezinhas, simpatias e benzeduras da farmácia e
da sabença caseira. Soubera, que mesmo na família, aquela doença vinha ceifando
muita gente. Não se esquecia de uma mulher que perdera, em uma semana, sete
filhos e o marido. Ali mesmo naquela casa, há pouco, morrera o menino que se
deitava ao meu lado. Apenas amostras. Poucas pessoas se levantavam, das
acometidas pela doença. Mesmo sem muitas letras, sabendo apenas desenhar o nome
e garatujar algumas palavras, a mãe tomou uma decisão heroica. Pegou uma folha
de caderno, anotou ali a cara e o jeito de caminhar da doença, hora por hora do
dia, também das noites. As feições do doente e as mudanças que iam ocorrendo em
seu semblante e corpinho impúbere. Vendeu a metade de seu patrimônio – uma das
duas únicas novilhas que ganhara de um irmão -, ajustou um positivo e o enviou
à cidade mais próxima, a cavalo, levando seu relato para um médico. Falava do doente e a malsinada febre. O
positivo levou uns dois dias para ir à cidade e voltar com as recomendações do esculápio
e alguns remédios. A mãe seguiu, ao pé-da-letra, as prescrições anotadas e
explicadas pelo facultativo. Cuidar da alimentação do enfermo. Só coisa leve,
papinhas de arroz. Nada de gorduras, nada de comidas cruas, nem mesmo frutas.
Água, só fervida. Unção de álcool três vezes ao dia, orientando também como atender
suas necessidades, evitando contato com lama, sujeiras, excrementos e qualquer
outra imundície, e outros doentes. O pequeno enfermo chorava, sentia-se
prisioneiro, torturado por aquela disciplina cruel. O tempo passou célere, pois
é assim que o tempo corre na infância da gente. Devagarinho o menino foi
tomando ânimo, se movendo no catre, começou a sentar-se e, em poucos dias, já
ficava de pé e caminhava, mesmo cambaleando, meio cai-água, ou apoiado pela mãe. Assim, escapei daquela
enfermidade e até hoje não atento para o que seria. Diziam que era, tifo, febre
tifoide, maligna, e outras febres. O certo é que naquelas distâncias, nas
barrancas do rio, sem médico e assistência de saúde, ninguém ficou sabendo que mal
era aquele. Sabiam apenas que matava pessoas e cada vez mais precisavam de
novas covas. O serrote traçador teve que fatiar muitas tábuas de cedro,
arrastando dia e noite seu pesado sofrimento. A doença deixou muitas
lembranças, quase todas más. Cada um tinha perdido um filho, mãe ou irmão. Não
era fácil esquecer porque havia o luto costumeiro e, não raro, nos cemitérios
improvisados, à beira das estradas, pedaços de mortalhas se espalhavam,
arrancados das tumbas por tatus heréticos. Escapei. A praga me esqueceu. Daqueles
dias, em névoa, recordo ainda o lufa-lufa da mãe, o ruflo de seu vestido
entrando e saindo do quarto, as reprimendas impositivas e sua mão me levantando
encaminhando para o mundo, por onde ainda hoje caminho. E às vezes, quando
fraquejo e resvalo sobre as carnes e os próprios ossos, no escuro, ainda é a
sua mão que, exausto, espero e procuro.
(De Diário Tardio)
Maio, Goiânia, ano COVIDE de 2020
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