sexta-feira, 31 de julho de 2020

ESTIO


 

I – Compáscuo

 

O cerrado exalta sua teimosia humana.

Lá estão os pastos ressequidos,

 gáudio magro para os estivais rebanhos.

Clamam no pastoreio a exaustão das ervas.

Caminham para o vento eriçando os colmos exilados

na estação mais dura.

Malgrado o azul sem augúrio, de céu nublado e chuva,

ainda vou ceifando flores

no compáscuo de luz solar e tardios rebanhos.

Com humana teimosia a terra exalta a nascitura brisa,

flash de suave secura, unhas de sede.

E como quem dá à luz um plenilúnio

as minhas mãos desenham o que transpira,

cujo destino é ser a trilha de bordada sombra,

 o verde suspirar de uma vereda.

 

 

II – Terra

 

Sempre esteve aí, sob a marcha inexorável.

Altas florestas, rios, montes, e mesmo o insatisfeito mar

se escora em sua alma côncava.

Impassível, balouça a rede do mundo

desfilando nos turvos céus o fósforo inalcançável das estrelas.

Aferro-me amoroso à epiderme

de seus vulcões acesos,

no abismo escuro espero animosa flor de erupções.

Sou apenas o pequeno e nascituro desafio da carne.

Meu ajuntado de músculos e ossos

carregam em seu farnel de sonhos

cidades, muralhas e destroços.

Deixei a exaltada arquitetura das multidões.

Ínfima rebeldia, caminho por vales, cerros e desertos.

Vem, acolhe o magro espólio, o desamado comodato:

desta alma débil, extremo canto e dor impura.

No dealbar da estrada havia sendas. Sem cavalgar, voltei.

Abandonado, nas estações candentes,

contido em barro, esperei sozinho.

 

 

III - Revoadas

 

Logo será a manhã das revoadas.

Recolho sangrando de crepúsculo aquelas memoriais jornadas.

Na altura, em sobrevoo, deixam adeuses às várzeas

em celebração de pátria.

Chegar e partir é dor - paroxismo extremo.

Nascer e morrer é nossa conta de fel e de suor.

Viver inclui cansaço e sede de alcançar

a falta que um porto apenas inaugura.

 

Logo será a manhã das revoadas.

Embarcaremos nas velas embebidas de vento e espuma.

Ai, lágrimas escorrendo nas praias!

Ai, desfiado pranto de sal pelos trapiches

desgarrados de todo chão e todo azul.

Em baixo a terra, o berço amado - torrão,

aconchego e infância de lidimas estações.

 

Logo será a manhã das revoadas.

Tudo que resta para trás é desalento.

Para lá aportam os amores verdes, sem outonos.

Por lá padecem as infâncias que não vingam,

corpos curvados, mão vazias e canções

que, magoadas, apenas balbuciam

o pizzicato de todo desencanto.

 

 

 

Pacha-Mama, 25 de julho de 2020

 

 

 

 

 

 

 

 


quinta-feira, 23 de julho de 2020

DIÁRIO TARDIO I - Pequena Peste



DIÁRIO TARDIO I


PEQUENA PESTE
                         

Sobre peste, deparei com uma na infância, isto é, quando era menino, porque infância nunca conheci. Fui homem desde os seis anos, ou antes, porque sendo o mais velho de uma récua de pai ausente, era chamado por todos de “o homem da casa”. Tinha que ser forte, adulto, servir de exemplo. Perdão, paciente leitor, isto é assunto aborrecido, piegas, talvez melhor tratado mais tarde. Com licença. Daquela época, que não me parece longe, me recordo de uma doença que apareceu pelos ermos onde vivíamos. As pessoas caíam de febre, com toda espécie de mal estar, andadeiras e vômitos, iam enfraquecendo, se finando e, opilados, em pouco se acabavam. Tinha eu lá meus sete ou oito anos, quando caí em prostração daquela enfermidade. Acomodado em um catre de braços de buriti. Tinha também um primo da minha idade na cama ao lado. Via minha mãe indo de lá para cá, feito lançadeira, disfarçando para que eu não soubesse o que acontecia. Perguntava pelo primo que ontem gemia na cama próxima, e para me acalmar dizia que estava brincando lá fora. Porém a mim, não deixava brincar. Também, mesmo que deixasse, meu corpo desmilinguido não encontrava forças para atirar de bodoque, trepar nas mangueiras, pescar no riacho ou correr nos jogos pueris daquele tempo. Me intrigava o gemido arrastado, a respiração em roc-roc-roc do serrote traçando madeiras e abrindo tábuas. Aquilo era dia e noite, porque, como soube depois, as tábuas eram para a construção de caixões. Nas vizinhanças, muitos pereciam e demandavam um enterro cristão. Minha mãe, sabendo dos perigos que aquela doença trazia e com o filho mais velho prostrado, a tempo de ser engolido pela peste, procurava desesperada algum socorro. Já utilizara todas as mezinhas, simpatias e benzeduras da farmácia e da sabença caseira. Soubera, que mesmo na família, aquela doença vinha ceifando muita gente. Não se esquecia de uma mulher que perdera, em uma semana, sete filhos e o marido. Ali mesmo naquela casa, há pouco, morrera o menino que se deitava ao meu lado. Apenas amostras. Poucas pessoas se levantavam, das acometidas pela doença. Mesmo sem muitas letras, sabendo apenas desenhar o nome e garatujar algumas palavras, a mãe tomou uma decisão heroica. Pegou uma folha de caderno, anotou ali a cara e o jeito de caminhar da doença, hora por hora do dia, também das noites. As feições do doente e as mudanças que iam ocorrendo em seu semblante e corpinho impúbere. Vendeu a metade de seu patrimônio – uma das duas únicas novilhas que ganhara de um irmão -, ajustou um positivo e o enviou à cidade mais próxima, a cavalo, levando seu relato para um médico.  Falava do doente e a malsinada febre. O positivo levou uns dois dias para ir à cidade e voltar com as recomendações do esculápio e alguns remédios. A mãe seguiu, ao pé-da-letra, as prescrições anotadas e explicadas pelo facultativo. Cuidar da alimentação do enfermo. Só coisa leve, papinhas de arroz. Nada de gorduras, nada de comidas cruas, nem mesmo frutas. Água, só fervida. Unção de álcool três vezes ao dia, orientando também como atender suas necessidades, evitando contato com lama, sujeiras, excrementos e qualquer outra imundície, e outros doentes. O pequeno enfermo chorava, sentia-se prisioneiro, torturado por aquela disciplina cruel. O tempo passou célere, pois é assim que o tempo corre na infância da gente. Devagarinho o menino foi tomando ânimo, se movendo no catre, começou a sentar-se e, em poucos dias, já ficava de pé e caminhava, mesmo cambaleando, meio cai-água, ou   apoiado pela mãe. Assim, escapei daquela enfermidade e até hoje não atento para o que seria. Diziam que era, tifo, febre tifoide, maligna, e outras febres. O certo é que naquelas distâncias, nas barrancas do rio, sem médico e assistência de saúde, ninguém ficou sabendo que mal era aquele. Sabiam apenas que matava pessoas e cada vez mais precisavam de novas covas. O serrote traçador teve que fatiar muitas tábuas de cedro, arrastando dia e noite seu pesado sofrimento. A doença deixou muitas lembranças, quase todas más. Cada um tinha perdido um filho, mãe ou irmão. Não era fácil esquecer porque havia o luto costumeiro e, não raro, nos cemitérios improvisados, à beira das estradas, pedaços de mortalhas se espalhavam, arrancados das tumbas por tatus heréticos. Escapei. A praga me esqueceu. Daqueles dias, em névoa, recordo ainda o lufa-lufa da mãe, o ruflo de seu vestido entrando e saindo do quarto, as reprimendas impositivas e sua mão me levantando encaminhando para o mundo, por onde ainda hoje caminho. E às vezes, quando fraquejo e resvalo sobre as carnes e os próprios ossos, no escuro, ainda é a sua mão que, exausto, espero e procuro.


(De Diário Tardio)
Maio, Goiânia, ano COVIDE de 2020




ELEGIA EM NOME DE DURVAL NUNES



ELEGIA EM NOME DE DURVAL NUNES
                                            Aidenor Aires*


Bateu à minha porta
o rumor de tua ausência improvisada.
Ainda há pouco, conversávamos sobre os apriscos,
o balir das cabras no apojo dos borregos.
Celebravas o zumbido doce das colmeias
dessedentando-se nas flores da caatinga,
nas águas do riacho.

Não concluímos aquela conversa sobre cantiga da terra,
o gemer das florestas, o lacrimejar dos ramos,
o tênue orvalho nos racimos que a pesarosa
mão do homem dilacera.

Ainda há pouco, me confidenciavas o mugido da rês
lambando os barreiros das encostas.
Que louvação e sofrimento gemiam nos aboios,
nas ladainhas de crença, fé e sonho!
Neles se compraziam os perdidos do sal e da ternura.
A bênção que proclama mãe Calima, e todas as mães
de filhos partidos na infância, que jamais retornarão.

Olhávamos o “Rio Preto, de Águas Cristalinas”,
e desenhávamos no espelho rútilo
 utopias de canto e poesia.
Olhávamos a Barra do Rio Grande escalando rochas, peraus
e correntezas
para chegar, arfando nos vapores, ao pétreo leito das barreiras,
sem a dormências das rasuras assoreadas.
Depois o rio se desmanchava em braços, em nervos, em veias
sondando os vales, a doce babugem no cio
 dos gerais.

Ainda buscávamos palavras para falar de exilados pés-duros
remoendo na secura as flores roxas da jitirana.
Ainda conversávamos, à mesa, como irmãos reencontrados,
sobre os poemas que fizemos.
Outros que cantaremos.
E aqueles que os poetas do futuro escreverão.

Falávamos da gente, da pele morena e dos rostos rosados
das caboclas púberes.
Eram tantos os seres, as gentes, as histórias,
salvos da vertigem do perecimento.
 E com voz rouca do rocio tardo,
sustentávamos o canto,
já alumbrando nossos olhos a luz da madrugada.

Sem aviso, enfim, foi se calando a tua voz.
Mas, no meu silêncio não falei sozinho.
Mesmo com meus braços alongados
par o chão das despedidas,
continuei ouvindo a tua voz.
 Era voz que ensinava o linguajar da passarada,
as cantigas de todo bicho que se move ainda
 entre arados e erosões.
 de seresteiros, de poetas e meninos.
 Eram vozes que o silêncio da morte não calava.

Apenas pedi ao vento cerrar a litania.
Interromper o despetalar das solares tabebuias.
Pedi às águas pausar a marcha dos cardumes e
o alarido das corredeiras.
Pedi aos seres da terra, das águas e do ar
para escutar comigo as vozes órfãs que perderam seu cantor.

E como ele retomasse a palavra e cantasse,
eu me calei.
Calou o rio. Calou o vento na floresta prosternada.
 E o poeta empolgou a voz:  Continuem o canto!
Que quem canta na dor e no sorriso, tantas vozes,
ainda que doendo, não cantará sozinho.



*Aidenor Aires é membro da Academia Barreirense de Letras,
da Academia Goiana de Letras e presidente da Academia Goianiense de Letras.