segunda-feira, 2 de junho de 2008

AÍ VEM O ESTADO DO SÃO FRANCISCO - Parte Final

Acostumados à riqueza fácil do ouro e das pedras preciosas, não se interessaram pela imensa região de economia agropecuária. Relembra a FUNDASF que ainda como hoje, administrar se resumia em cobrar imposto para os cofres de sua majestade. Diante do abandono, D. Pedro I ofereceu em 1826 a região à Bahia, que a aceitou. Foi anexada por um ato provisório em 1827 que inercialmente vem sendo mantido até hoje. O povo do Oeste baiano, da margem do São Francisco, habitantes da antiga Comarca do mesmo nome, reclama da falta de vínculos culturais com Salvador, isso em razão de origens diversas, o que leva o povo da região a apresentar outra face cultural, com expressões também diferentes. Invocam maior vizinhança e afinidade com Goiás e Tocantins do que com a heráldica Bahia de São Salvador. O intercâmbio da região se dá mais com cidades do Tocantins, Goiânia e Brasília do que com Salvador. Alegam que não perderão tradições baianas, porque elas nunca fizeram parte de suas vidas. Localizam suas raízes na antiga Comarca do São Francisco desde as revoluções Pernambucanas. Aí sim, reside a origem de sua tradição, o berço de seu modo de ser, alimentar, morar e todas as manifestações culturais. A idéia da criação do Estado do São Francisco se escora nessas tradições, nas diferenças econômicas, porque a região sempre teve economia agropastoril, que agora ganha força com as levas de ocupação sulista com impacto poderoso na produção, mo meio ambiente e na cultura. A região sente-se debilitada pelo abandono que sua diversidade tem encontrado nos governos da Bahia. A criação do novo estado poderá abrir horizontes para sua gente. O fortalecimento da cultura regional imprescindível ao Brasil plural. Poderá redefinir objetivos e ganhar com o atual fluxo de progresso baseado na produção de frutas e grãos, seguido da industrialização, trazendo para dentro de si um governo que possa administrar o novo estado a partir de sua própria realidade, anseios e necessidades. Consultando esses breves argumentos. O povo de lá tem muito mais. Pode-se ver que a criação do Estado do São Francisco é um futuro a que não se pode fugir. Quanto mais cedo vier, mais passo terá dado o país para seu mais orgânico, igualitário e humano desenvolvimento. Pensando nisso, me veio à lembrança uma estrofe de um poema que escrevi há muito tempo: Eu vou sozinho e sou muitos/esta é a minha fortaleza/o sangue que vem de longe/no meu corpo se represa/quem vem da raça que eu venho/não pode cantar fraqueza. (...) Eu vivo é fora do tempo/no meu tempo não há pressa/nos meus mortos vejo o rio/onde o futuro começa. Diário da Manhã, 30.05.08

VEM AÍ O ESTADO DO SÃO FRANCISCO

Quem observa o mapa do Brasil pode ver, além de sua extensão continental, uma enorme disparidade em sua divisão interna. A Federação é uma colcha de retalhos disforme. Coisa que começou com as capitanias hereditárias, continuou nas províncias e se mantém nos estados republicanos. Uns, pequenos como o Sergipe; outros, gigantescos como Amazonas, Pará, Minas e Bahia. Goiás já foi assim, até que a criação do Tocantins beneficiou os dois territórios que ganharam desenvolvimento e progresso, antes impossíveis. Germinam hoje vários projetos de divisão desses estados colossais que sofrem com desigualdades internas. Com a distância de suas metrópoles. Com a mania colonialista das administrações que só olham para as regiões mais distantes e pobres para saquear, buscar produtos e impostos, enquanto sonegam estradas, escolas, saúde e o conforto da riqueza e da vida moderna. A redivisão territorial é um desafio que o país tem que enfrentar para aproximar o poder do povo, colocando nas vizinhanças de todos os cidadãos os centros de decisão. Afinal, esse povo também precisa ser ouvido. Como sucedeu com o irmão estado do Tocantins, a região do oeste baiano beirando o Velho Chico pulsa em ânsias de emancipação. Traz nos alforjes e bruacas argumentos irrefutáveis. Em primeiro lugar, o colorido cultural. Aí não é a Bahia do recôncavo, do litoral, com seu jeito malemolente de capoeira, berimbau, candomblé, do cacau e do petróleo e do axé. É o sertão de Euclides da Cunha, do vaqueiro encourado, da bravura jagunça e cangaceira, das vaquejadas, do forró, do repente, das devoções atávicas, caldeadas na mestiçagem mameluca, cafusa, barranqueira, geralista ou brejeira. Cultural e etnicamente está mais próximo do centro-oeste e do nordeste do que da doce madrasta Bahia dos trios elétricos, dos afoxés e dos terreiros. Outro argumento enraizado no tempo é o de que esta região que molha o rosto no Velho Chico, encosta as espáduas na Serra Geral de Goiás, na Serra da Tabatinga com o Piauí e a Serra dos Irmãos, até Pernambuco, nunca foi Bahia. Já nasceu sendo São Francisco. A matéria é bem conhecida e explicada pela Fundação de Integração Cultural e Cidadania do Alem São Francisco, com sede em Barreiras. No período das Capitanias hereditárias, de 10 de março de 1534 até 1824, estavam ligadas a Pernambuco. Foi desmembrada depois da revolta dos pernambucanos para criar um país na conhecida Confederação do Equador. Para enfraquecer e punir os pernambucanos que queriam deixar de ser brasileiros, formando o novo país, a região de chuvas torrenciais, rios perenes e muitas riquezas foi anexada, primeiro por D.João VI, em 1817, depois por D.Pedro I, em 1824, separaram a área de Pernambuco, anexando-a a Minas Gerais, por seus limites ao sul. (Estimado leitor, continuo na próxima semana ) Diário da Manhã de 23.05.08

domingo, 18 de maio de 2008

CELULAR PERDIDO


Como sarna, o celular alastra-se. Mais uma inquietação. Interrompe conversa. Atrapalha enterro. Assusta a missa. Apêndice incômodo. Tudo no corpo tem seu lugar: chapéu para cabeça; sapato para os pés; luvas para as mãos. Mas celular não é coisa humana. Incômodo das prestadoras que amarram o vivente em suas contas e não soltam mais. Humano não foi feito para celular. Não pode ser pendurado nas orelhas. Não é sexy. Não é viril. Mas não consegui ficar fora da besteira geral. Adquiri um. Já são três ou quatro. Estão sempre lançando novos e tornando os velhos imprestáveis. Vejam o que me aconteceu. Ia à Feira de domingo na Vila Nova. Já fui feirante. Até hoje dói uma escoliose de carregar, sobre a coluna ainda tenra, caixas de tomate, mandioca, inhames... As mais pesadas do comércio de verduras. Não sei pra que celular na feira. Só para a mulher ficar ligando e acrescentando itens na lista de compras. Olha, não esqueça o piqui, a gueroba... No meio dos esbarrões, perdi o maldito aparelho. Só dei conta quando abria as sacolas. Alisava a cintura, apalpava os bolsos. Nada. Exalou-se o intruso já feito de alguma amizade. Aflito, comecei a telefonar para o meu número. Lá pras duas da tarde, uma voz respondeu irritada: - Quer parar de me incomodar? Estou trabalhando e você não para de telefonar! Respondi humilde ao arrogante telefonista: - Amigo, você encontrou meu celular. O único jeito é chamar, não? Do outro lado, repreensões: - Escuta moço. Eu achei o seu celular. Não roubei. Não sou ladrão. Sou evangélico. Foi Deus que pôs ele no meu caminho. Só entrego se me der um dinheiro. Ponderei, diante da extorsão, que perdera o tal celular na feira, que poderia dar uma gratificação. Dissesse-me onde encontrá-lo para resgatar o miserável. Do outro lado, a voz impôs condições: - Agora não posso. Estou em Anápolis. Se quiser, posso entregar à noite, na Praça da Bíblia. Mas são cinqüenta pratas. E não precisa ficar ligando. Ás oito da noite eu te ligo pra marcar o lugar da entrega. Após o diálogo nojento me aquietei. Liguei para a prestadora e pedi o bloqueio da linha. Já tinha me esquecido da porcaria, quando o cidadão me chama, por volta de sete e meia da noite, instruindo: - Não te falei que não sou ladrão? Vou entregar seu celular. Esteja na Praça da Bíblia em dez minutos. Estou pegando o ônibus para Caldazinha. Como não sabia este endereço, pedi que ficasse no Frango Gostosão. Afinal, ali é mais claro. Saí correndo. Dez minutos... Bordejava a praça, Tânia ao volante e eu perquirindo sombras. Na luz do frango assado, Gostosão vejo uma figura curvada ao peso de um saco sujo. Gritava e gesticulava. Estou aqui. Sou o Romualdo. Estou com seu celular. Já estava íntimo. Veio sorrindo. Entreguei-lhe uma nota de cinqüenta, passou-me o aparelho e ainda me deixou uma admoestação severa: - Por que você foi bloquear a linha? Não confia em mim não? Já disse que não sou ladrão. Sou evangélico. Agradeci. Peguei o celular. E resmunguei: - Não se esqueça do dízimo do pastor!
Texto publicado no Diário da Manhã em 16.05.2008



quinta-feira, 24 de abril de 2008

PEDRO E SEU CAVALO (Parte final)

Voltando ao Cavalo de Pedro... Fosse o Cavalo de Tróia teria adentrado os arraiais e soltado seus guerreiros. Mas é o cavalo de Pedro. Sem lugar. Mas com certa elegância. Pedro sorri como se fosse ao Jóquei Clube para dançar um tango. Se ainda houvesse Jóquei. Caminhando até o Casablanca ver um filme de caubói, se houvesse Casablanca. Na serrinha, menos incômodo para a casa das esmeraldas, para a casa das campinas, longe dos poderes. Depredado, ofendido, humilhado, padecerá pichações, insultos e incêndios. Afinal, ali resta ainda um pouco de cerrado. Deveria ser um parque. Fica a Praça Cívica, com nome de Pedro. Talvez sobrevivam entre os estacionamentos, os pivetes e lavadores de carro que loteiam as ruas, as portas das igrejas, os salões de festas, os teatros. Como a gente de cima privatiza o dinheiro público, a merenda dos meninos, os remédios dos velhinhos, os buracos das estradas; a fome da ralé, os miseráveis privatizam o que podem. O monumento logo sofrerá esta ação dos reformadores sociais das ruas. Será ocupado: trouxas, carrinhos, meninas prenhes, moleques com chuços para pequenos assaltos. Goiânia já não cabe Pedro. Talvez porque tenha vindo a cavalo. Se fosse no fordinho, na camionete Chevrolet vermelha, ou mesmo pedestre andarilho, certamente poderia se esgueirar pela deserta Avenida Goiás remasterizada e nua. Poderia se escorar entre as casas derrubadas da Rua Vinte. Seria mais fácil passar despercebido sem ofender a inveja dos incapazes de gerar um sonho. Vão estragando o alheio, ciscando lixo dos outros. O Governo encarregou a artista de erigir uma estátua para ficar no vento, sem moradia. Porque ninguém atenta para um lugar onde pousar o brônzeo eqüestre, inquietante memória de Pedro. Lembram até plebiscito. A hospedagem natural seria a Praça Cívica. No coração de sua cidade. Arquitetos e paisagistas sabem como resolver problemas de espaço e ambientação. Ali, defronte o Palácio Pedro Ludovico. Bem na entrada. Não serve? É discrepante a figura com o colosso envidraçado ou os janotinhas engravatados? Então deve ser ali, canto direito da Praça Cívica. Onde o Prefeito Íris fez uma sede provisória para a administração e vai se tornando definitiva. Basta derrubar o retângulo provisório, reaparelhar a praça, incluindo ali o Monumento, como sucede em qualquer cidade. Um lugar nobre para a memória do fundador. O que não pode é Pedro ficar vagando, alma penada, sem lugar para sua figura ou pasto para seu cavalo. Medida extrema: coloquem Pedro e seu cavalo na porta da sua casinha museu. Mesmo abandonada, como anda, lembra o homem que é o único culpado por não haver lugar, na cidade que fez para sua estátua. É culpado de ter morrido pobre. Não ocupou ou praças, vales, loteamentos. Podia ter reservado umas quadras. Viveu na modesta casa à sombra de dois mognos. Por isso, não resta a Pedro senão a dura pedra. Uma porta de rua, onde amarrara o sonho, único espaço, pasto possível para amarrar, agora, seu cavalo. Publicado no Diário da Manhã do dia 25.04.2008

PEDRO E SEU CAVALO - II

Entre Silas e Caríbdis, o espeto e a brasa, o Céu e o Inferno, vagam Pedro e seu cavalo no dia incômodo e chuvoso do Cerrado. Goiânia perplexa, indaga: quem é o cavaleiro de bronze, polaina e chapéu que deseja pousio e pastejo para seu rocinante? Ninguém responde. Ou melhor, tanta gente contesta, que já não se sabe de onde vem a fala. Eco. Assim o clamor retumba de prédio em prédio, de praça em praça, em busca da palavra definitiva, misteriosa, esotérica. Onde pousar o cavalão e seu cavaleiro. Digo que na medida em que a cidade foi crescendo, depois do gesto gerador, gestador, paridor e desplacentador de Pedro e seus companheiros estadonovistas, o maior trabalho de sua gente foi exercitar o esquecimento. Aqui nada envelhece, tudo é arrasado em nome do novo. O belo edifício art dèco vai ao chão ou o cobrem de placas e luminosos. A ganância imobiliária espalhou a cidade em inumeráveis bairros, com imensos vazios reservados à especulação. Os mais pobres se escafedem por trás das grotas, dos montes, ainda que poucos e distantes. O que resta de terreno entre a população esgarça, vai virando filé da especulação. Verticaliza-se a cidade com o solo criado nas incorporações e, num lote de quatrocentos metros, se levantam edifícios de vinte andares com centenas de apartamentos, com preços nas nuvens. Vendem o solo, a rua, a paisagem que resta e o sonho que o mercado inventa. Depois a moradia dos panfletos, dos vídeos gritantes, dos anúncios de meia página, acolhe o incauto que pagará toda a vida, por umas gavetas aéreas, umas catacumbas apertadas. Tudo, talvez, para que se acostume à exígua terra que o espera, ao indiferente e impessoal jazigo dos cemitérios que brotam, a cada dia, para acolher a população silenciosa. Esses terrenos também vão às alturas. Devem ser comprados para garantir que o morto tenha digna inumação, depois lentamente enganchado em alguma UTI paga por bolso próprio ou pela viúva previdência que, que, sem servir à vida, serve bem ao mercado da morte. Sem consentimento para morrer em paz, estufa, inchado, quase podre, dos oxigênios, soros e aparelhos conservadores da carne final. É, então, agarrado, por um sinistro proselitismo de enfermeiros, serviçais e catadores de corpos em disputa, são levados às morgues, destripados, formolizados, remanufaturados, maquilados, para que tenham aquela mesma cara cerosa e isenta dos velórios. Aí, podem esperar os ritos, as velas, as flores, as missas e o desespero dos vivos, cujo temor da dor, dos deuses e da morte, simulam breve consolação. Enquanto madames puxam pelas mãos adolescentes grávidas pelos mercados, a classe média entretém o ócio nos parques, vão torturando meninas, abusando e matando meninos. Enjaulada, gente ainda capaz de alegria elege, sacolejando, a Miss Eixão navegante num esqueleto de transporte caótico que atravessa a Avenida Anhanguera rasgando insolente a antiga harmonia art-dèco. (Continuo na próxima semana.) Publicado no Diário da Manhã do dia 18.04.2008

terça-feira, 15 de abril de 2008

CONGRESSO DE POESIA

Bento Gonçalves, RS, 2006

(Inédito)


O amor

Para dizer que existe, o amor
pousou em minha janela
sua asa triste.




O vendedor de facas

O poeta dispensa
a mercancia.
Amargo punhal
é a poesia.
E para descarnar
o poema
só basta a pena.



Congresso de poesia

Interromperam a função:
foram ao brechó
buscar poetas em desusoe musas de segunda mão

domingo, 13 de abril de 2008

PEDRO E SEU CAVALO

O goianiense, mesmo com o pouco apreço que tem pelos monumentos, exceção aos bustos erigidos aos seus honrados pais, tem ouvido, há anos, como as notícias da dengue, a história da estátua de Pedro Ludovico e seu cavalo. Não sei de monumentos com alguma permanência, em Goiânia. Bem, há a estátua do Bandeirante, doada aos goianos pelos estudantes do Largo do São Francisco e, que um vereador pretendia arrancar e devolver aos paulistas. Ou aquela da Praça Pedro Ludovico Teixeira, o monumento às três raças. Visão anacrônica da artista ou dos encomendeiros da obra, que não sabiam contar o número de etnias que se misturaram ou somaram na formação do goiano. O melhor seria um monumento aos construtores de Goiânia, tipo monumento às Bandeiras, de Brecheret, envolvendo todos que sangraram, gozaram, enriqueceram ou morreram pela construção da cidade. Aí, nenhum precisaria de pessoal gesto nobre. A sinergia dos burocratas de Pedro e Getúlio Vargas indissoluvelmente misturados à ralé cavadeira de buracos. Um monumento onde todos pudessem se reconhecer. Havia ali na Praça do Trabalhador um painel que a intolerância pichou e depois destruiu. A Pedra Goyana, equilibrando-se, por malabarismo da natureza na trempe lítica, como uma flor da montanha, colocada ali ainda no deslumbre do primeiro dia da criação. Uma gentinha da nata, com alqueires de álcool e estultice eliminou aquela beleza que incomodava o olho frio do mundo. Falei aqui sobre a estátua de Pedro e seu cavalo. Embora haja discussões sobre a pertinência, qualidade estética, o sofrimento da artista Neusa Moraes, o que angustia o goianiense, se isso é caso de angústia, é: onde amarrar o cavalo de Pedro? Prontamente, em meio ao aranzel do começo deste governo, que já vai ficando com cara de ocaso, a Presidente Linda Monteiro, da AGEPEL me noticiou que estava providenciando a vinda da eqüestre homenagem para Goiânia. O governo, em fim, pagara o trabalho de fundição e transporte. Estive no gabinete de Linda e pude ver a maquete de um memorial que deve acolher a estátua, no alto da Serrinha, de onde Pedro poderia continuar a mirar, morro a baixo, a extensão da cidade que sonhou com Atílio Correia Lima e outros foram puxando, recortando, num Frankstein de luz e concreto que precisa ser povoada de urgente gesto humano. Continua a polêmica sobre o melhor local para a estátua. A Praça Cívica? Mas, ali já tem o das três raças! A Serrinha, onde ainda há um pouco de cerrado? Um vereador propõe um plebiscito. Quem engendrou nutriu e pariu a estátua não tinha em mente um lugar para sua ereção Nada erótico, leitor. Talvez não acreditassem que aquela mulher frágil de rosto indígena e vontade capaz de morte conseguisse por de pé Pedro e seu cavalo. Contrariou a todos. Morreu mas contrariou. O cavalo ficou pronto. (o cronista conclui sua arenga na próxima semana.)
Publicado no Diário da Manhã dia 11.04.2008

sexta-feira, 14 de março de 2008

JOSÉ LOPES RODRIGUES - O CENTENÁRIO DO POETA

O conforto e os recursos da ciência médica vêm fazendo muita gente demorara na terra. Tipos preciosos honram esses dias; outros, nem tanto. Fazem o ordinário de nossa civilização. Reproduzir, acumular bens e anoitecer no esquecimento. Nem uma brisa de afeto ou canção de amor. Se muito, o ruído das travessuras. A dureza com que trataram a vida, a terra, as pessoas. Quando faltam dão ao planeta uma forma de alívio. Há gente que em poucos anos de vida enche século e até milênio. Buda, Cristo, Gandhi, Shakespeare... Nossa primeira geração de centenários não nasceu em Goiânia. Chegaram. Ajudaram a construir a cidade. Entre os que deixaram boas lembranças, pioneiros na educação, cultura artes, no tempo em que a cidade ainda se contorcia no barro, sofrendo sua angústia de alturas, recordo meu Mestre José Lopes Rodrigues. Manhãs ensolaradas da antiga Escola Técnica Federal de Goiás. Figura simples e elegante, brandamente enérgico, ensinava língua portuguesa à moçada bravia da ETFG. Veio de Almas, hoje Tocantins, começou seus estudos em Natividade, depois Barreiras e Salvador, Bahia, onde foi contemporâneo de Jorge Amado. O que dava especial brilho às suas aulas era o fato de já ensinar a atroz gramática acompanhada de textos que recitava como o soneto do “Tertuliano, frívolo e peralta...” Também sua dedicação à poesia. Vindo das influências do romantismo-parnasianao. Pendia para a última tendência, pelo zelo vernacular, rigor na perfeição das formas. Deixou sonetos bem lavrados. É autor do hino do Congresso Eucarístico de 1948. Pertenceu ao Instituto Histórico e Geográfico de Goiás e à Academia goiana de Letras, onde foi sempre celebrado como secretário exímio, pela fidelidade nos relatos e a perfeição do texto. Nascido em primeiro de dezembro de 1908, merece o resgate de sua vida criativa, a republicação de sua obra Vibrações e textos esparsos e inéditos, inclusive alguns versos fesceninos que moram na lembrança de seus contemporâneos. Veia crítica e lúdica do poeta. Ao falecer em 1990, o Mestre José Lopes deixou heranças para várias gerações. A do professor, que naquele tempo os etefegeanos chamavam Mestre, com orgulho. A do intelectual, quando escrever, e até ler, eram ofícios da insanidade. O beletrista era olhado como um possível demente. Por isso, talvez, publicassem pouco. Um livro ou dois. A Academia Goiana de Letras, não se esquecerá de comemorar este ano seu centenário, quem sabe, com a edição de sua obra. Como homem de serena conduta franciscana, José Lopes não pleitearia esta homenagem. Mas a geração que o conheceu e poliu os sertões do Meia-Ponte deve isso ao seu poeta, que é daquelas pessoas com quem muita gente aprendeu ter fé na cultura, amor aos livros e até as ousadias da escrita. Não enriqueceram com as oportunidades de Goiânia. Não deixaram loteamentos, nem edifícios, nem bancos, nem indústrias, nem viraram prósperos e vazios políticos. Levaram sua vida ensinando, entre coisas, a beleza e o sentido que pode ter o dia do homem sobre a terra. José Lopes Rodrigues, é um desses que vai navegando no presente de nossas lembranças.
Crônica publicada no Diário da Manhã, dia 14.03.08

O BANDEIRANTE E A MEMÓRIA

Seria bom se cada um escolhesse sua memória. Escolher pais, avós tribo, povo etc. Mas não parece ser assim. As parcas ou o carma nos meteram dormentes na matéria. Despertamos e não sabemos dos programas, ou vírus que carregam o nosso HD. A memória da espécie, a herança genética que define em cada um, a cor da pele, dos olhos, o câncer, o Hitler, o Bush, ou Gandhi. Tudo pode vir no pacote inicial. Até a ilusão da poesia. Imagino, então, que ninguém é dono de sua memória. Guarda apenas dias sobre a terra. Não pode cortar nada. Viemos de muitos lugares. De muitas mães e muitos pais. Quinhentos anos contam a história da América, para os cristãos conquistadores. Séculos de ciência, músicas, crença, soterradas pela força dominante de espanhóis, portugueses, ingleses, holandeses e franceses. O maior genocídio de que o homem foi capaz. Não se dirigiu a um povo, a uma fé, a uma etnia. Desabou sobre um continente com tudo que havia nele. A Europa do século XIII e XIV vivia o sofrimento das guerras, da reforma protestante, a inquisição, a pobreza. Restava usar a tecnologia de que dispunha para empurrar seu sofrimento e avareza pelos mares. Armas de ferro e fogo, cavalos e armaduras. Tudo com a bênção da cristandade: ampliar as fronteiras da fé e do império. As armas, guerreiros e cavalos pisoteavam índios e os sacerdotes ungiam a matança, catequizavam, batizavam. Os primeiros tiravam a vida e a liberdade do corpo, os últimos seqüestravam para Roma as almas, os nomes, as crenças, queimavam códices, e introduziam o mais belo auxiliar que puderam, o Diabo. E em seu nome exorcizou, expurgou queimou a cultura dos povos da América. Nós, que caminhamos pelas ruas de Goiânia, por esses ermos para cá de Tordesilhas. Não pudemos continuar caingangues, xavantes, caiapós, carajás, cafres, nagôs ou cambindas. Nem europeus. Nossos bisavós, degredados, aventureiros, bandeirantes, tinham atrás de si coroas que diziam: avançar, escravizar, tomar, queremos nosso quinto. De outro lado, a clerigada instigando: queremos as almas, se possível com corpo, queremos escravos, queremos o ouro para nossos altares, os dízimos dos impostos de Deus. Maré bárbara. Na tsunami nos misturamos todos. Não joguemos fora Calabar, Silvério dos Reis, Domingos Jorge Velho, Anhanguera, Sepé-Tiaraju, Apoena, Raoni, Tibiriçá, os que devoraram o bispo Sardinha, ou Lampião. Não deixemos de lado Zumbi, Balaio, Bento Gonçalves, D. João VI, os Pedros, nem todos os escravos, índios, vivos ou mortos. Porque todos seguem conosco. Na nossa carne, no nosso sangue, nas nossas danças, músicas e crenças. São nossos parentes. É com eles que vamos para o futuro. É também com chegantes, italianos, japoneses, chineses, coreanos, russos, suecos, alemães que vamos dando forma a esta nação que pode ensinar a tolerância, a convivência e algum sonho de paz para a humanidade. Deixemos o bandeirante na memória. Se o vereador Rusemberg ponderar, poderá retirar seu projeto e poupar a Câmara de Goiânia do vexame de ter que votar esta infeliz matéria.
Crônica Publicada no Diário da Manhã do dia 29.02.08

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2008

DESENCANTAMENTO

Feliz é quem se encanta. Descobre nas pequenas coisas um mapa de mistério. Isto faz falta ao mundo. Originalidade. O homem, farto da surpresa, faz tudo igual. Palavra da moda: clone. O leitor já viu no supermercado, as embalagens: uma a cara da outra. Os frangos todos depenadinhos, plastificados, em formação, como se houvessem saído de um mesmo ninho. As flores e jardins, dispostos e podados, tão harmoniosos que não ousam estirar um galhinho atrevido, nem mesmo um despetalar mais afoito. Obedientes à tesoura do jardineiro. É a estética cemiterial dos paisagistas. Dê uma olhada nas avenidas dos condomínios fechados. Lembram logo aléias de cemitérios, bem talhadas aos moradores semi-sepultos, encolhidos, passando mortuários nos carros de vidros escurecidos, quase invisíveis. Espetam aqui um pinheiro exótico, acolá várias palmeiras alienígenas. Vivendas, reclusas, tomam um ar único de túmulos bem cuidados. Parece que paisagistas e arquitetos não olham ao redor, fogem da euforia da flora tropical, e se entregam ao gozo fácil das revistas com cenários artificiais e arvorezinhas importadas. Dê atenção aos jornais da televisão. Os repórteres esforçam-se para exibir o mesmo design. Cabelo, maquilagem, entonação e voz. Quem se lembra das frutas? Mamões de cinco ou seis quilos. Mangas de cores, tamanhos e sabores surpreendentes. Bananas, então, onde estão as chamadas roxas, santomé, goiabinha, chiadeira, naniquinha, ourinho? Restam três ou quatro tipos, medidas para caber nas embalagens. Laranjas... Já se foram: joão nunes, baiana, fofó, sangue, lisa... Há uma pera, quase sempre seca, e brilhante com um adocicado sabor de agrotóxico. Se as coisas da terra andam assim, o que dizer daquelas que o homem manufaturou? O horror da gastronomia universal, os sanduíches que encobrem em fatias de pão molhos imperscrutáveis e carnes inconfessáveis. Redondos, fofos, melosos de maionese e catchup. Os devoradores ficam na incômoda posição de cachorro que abocanhou osso grande de mais. Vai mordendo, remoendo, lambuzando a cara, respingando em montanhas de papel o rejeito da merenda. Depois empurra o embucho pra dentro, a copos ou litros de cáustico refrigerante. Com o olho na televisão, na mídia, essa gente foi perdendo alguns sentidos, a começar pelo paladar. E as mulheres... Adeus corpinho de violão! O novo estilo é de cabide das grifes de moda. Pegam as mocinhas impúberes, treinam, adestram. Vão adelgaçando, esfiapando até virarem umas garcinhas anoréxicas que enchem as burras dos fotógrafos, dos donos dos desfiles, dos olheiros do mercado de carne magra. Umas já nasceram assim, outras se fizeram assim por amor do ofício. Um dos olheiros, perito em encontrar essas carninhas novas por aí, foi didático, enquanto formava novo plantel: - Esta é até boa. Podia ser aproveitada. Porém tem um nariz ruim. Seria preciso uma plástica. Mas como a oferta é grande, não vamos perder tempo, vamos escolher quem já tem nariz no jeito.

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008

DEIXEM O BANDEIRANTE EM PAZ

Goiânia é um susto. Assustou os descampados da Campininha,quando Pedro Ludovico chegou e, em nome do Estado Novo, ordenou: Faça-se a cidade! Susto maior Goiânia deu no velho Goiás. Mudou rumos, ensinou caminhos, mudou rosto e fala. Puro susto, Goiânia escapou das mãos de Pedro, de Atílio Correia Lima, de Venerando de Freitas. Seguiu assombrando sertões e estirando o olhar de moça faceira para o resto do país. Insatisfeita, namorou o mundo. Exibiu vezos de Capitu para japoneses, italianos, gregos e troianos. Cativou a todos. E foi se enchendo a cidade, sempre de espantos, sustos e novidades. Desembestou no planalto. Perdeu os freios, sacudiu o cabresto. Espalhou-se numa largueza a perder de vista. Com sua prosápia de moça fácil, Goiânia enche os olhos dos incautos. É apenas misteriosa. Quando a agridem, desrespeitando seus predicados de donzela fidalga, apenas esquece. Ou deixa o nominho do ofensor tão miúdo, chulo, amorfo que esvaece sem deixar rastro. Já foi linda jóia arte decô. Infância de cidade-jardim. Pensou que podia ir crescendo, aumentando seu bem-querer, para além do desenho original. A cruz Anhanguera-Goiás tomando rumos de horizontes. Caberia todo mundo atapetando de casas e edifícios as planuras e colinas. Mas chegaram bárbaros. Chegaram gentios. Chegaram vândalos. Para esses não sobra lugar para espetar uma placa, levantar um espigão, semear um artefato de mau gosto. Nos últimos dias, apareceu um edil. A palavra servia para nomear um magistrado no império romano. Cuidava de inspecionar e conservar as coisas. Daí vem o nosso vereador. Criação dos portugueses, que tem mais ou menos as mesmas funções. Este daqui quer cassar a estátua do Bandeirante, que há muito está de pé na praça de igual nome. Bem ali, no centro da cidade. Não há goianiense ou chegante um pouco atento que não tenha este ponto como referência. Ali os estudantes se reuniam, quando ainda eram capazes de indignação e sonho. Ali se faziam os comícios da democracia aprendiz. Sempre foi reprovada, mas sempre pôde voltar a soletrar. Espetáculos de música, comemorações, festas. Por isso, a praça com sua estátua estão gravadas na lembrança, na paisagem afetiva do goianiense. Se nossos mortos têm memória, nossos pais, mães, avós levaram para o outro mundo o postal de Goiânia deste jeito. Com a praça do Bandeirante e o garboso paulista, de bacamarte, olhando para o oeste. A saga bandeirante foi cruel e árdua, como foi a conquista e saque da América Latina. Esses aventureiros carregavam um pensamento, uma crença que sustentava sua ambição. Sem eles talvez não estivéssemos aqui. Nem mesmo o ilustre vereador. Ao que se sabe, não é Xavante Carajá ou Craô. Podemos passar muita coisa a limpo. A começar pela explicação à sociedade sobre o que alguns políticos eleitos, inclusive vereadores, estão fazendo de seu mandato em favor do povo que os elegeu. Ora, deixem o Bandeirante, a cidade em paz!

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2008

HAVIAM DEZ ÍNDIOS SENTADOS

Eu vi, senhores, em Sukua,
dez índios sentados.
Eu vi dez índios molhados
da selva amazônica
sentados em Sukua.
Os índios não estavam bêbados,
não estendiam as mãos aos turistas,
não pediam aos frios passantes
quinquilharias de plástico,
obséquios eletrônicos
nem a doce embriaguez
da pax americana.

Eu vi dez índios sentados.
Foi em Sukua,
sob o céu de Morona Santiago,
no convulso e vulcânico Equador.
Dez índios com suas lanças,
dez índios com suas tintas
da cor do sol da manhã.
Com lanças de sangue abrem
na selva um rio sem nome,
um rio de liberdade
no peito de cada homem.

Fazem um ofício de guerra:
ensinar passo e encontro
nos descaminhos da selva.
Eu vi dez índios sentados,
os dedos na tipewriter
e a esperança na mão.
Pela distância ensinavam
com alfabetos e letras
palavras novas e antigas
que são águias disparadas
contra o ninho da opressão.

Eu vi dez índios sentados.
Senhores podiam ser
de seus destinos antigos.
Eu vi dez índios sentados
e conto à América este fato.
Conto aos índios,
conto aos brancos,
com a certeza feroz
de que uma nova lição
se pode colher segura
das tintas deste retrato.

Eu vi dez índios sentados
e disso faço notícia,
bajo el cielo azul de Sukua,
en Morona Santiago,
del dulce y convulso Ecuador.

INFERNO CELULAR

Com o aparelhinho no bolso ou pendurado no cinto, o fulano sente-se membro da família consumista. Não é um sem celular. Toma ares de importância incompreensível. Desatenção pernóstica. Interrompe conversas, invade diálogos. Já vi um que estirava o pescoço, em contorções de galinha bebendo água, falava alto para a platéia involuntária: - Olá doutor, como vai? Falou com o deputado? E nosso negócio? O Senhor sabe, os votos daqui são favas contadas. Depois de olhar, superior, a ralé próxima, desliga sorridente. Outro, de segunda idade, quase terceira, encosta o aparelhinho na bochecha de gozo sedentário e cervejadas crepusculares, murmura para alguém com blandícia e paixão. Remexe dengoso o traseiro murcho, alisa com a mão a barriga insinuante, ajeita a calça, enquanto ronrona doçuras, deixando transparecer o momento de feliz herança juvenil. Uma bicota e um hum... hum, conclui o diálogo de Romeu com alguém no ciberespaço. Para meu amigo Ostra, entretanto, o objeto místico-erótico nunca trouxe o esperado prazer. Nos primeiros dias saiu espalhando seu úmero, disparando torpedos e mensagens. Amigos, vizinhos, parentes e outros incautos. Era uma aventura apertar o botãozinho que comandava a discagem de onde estivesse. Caminhando pela rua, no barzinho, no consultório, ao volante do carrão e até nos lugares recônditos onde se cumprem as necessidades primais do ser vivo, nos banheiros, entre gemidos e sacudidelas. A lua de mel durou poucos dias. Começaram a chegar as faturas. Chamadas de lugares nunca pensados. No meio da noite. Até uma ligação de falso seqüestro. A voz sombria dizia que o irmão estava em cativeiro. Ouvia gritos e apelos. Teve a sorte do gerente do banco desconfiar do saque em dinheiro vivo e avisar a polícia. Escapou da extorsão, mas ficou traumatizado. Ligou para a tal servidora. Quero cancelar minha assinatura. Estou farto de celular. O atendente indaga o nome, CPF... Quer saber o motivo. O Ostra esclarece. Cancelar não pode, pode trocar por pré-pago. O atendente pede um tempo. Fica tocando uma musiquinha chata. Acaba dizendo que não é com ele. Vai passar a ligação. Outro atende. Pergunta tudo de novo. Se não quer outro plano. Fala de uma promoção. Ganharia tantos torpedos, mais não sei quantos minutos para falar com a sogra. Até um aparelho novo. Quero cancelar a assinatura. A ligação cai. Recomeça. Três dias depois, uma semana, um mês. Vai de São Pedro a Nossa Senhora, de atendente a atendente e nada. A conta continua chegando. Cada vez mais alta. E nada de conseguir ser ouvido. Percebe chiste e ironia no atendente treinado. Depois a ligação cai. Sísifo, recomeça. Por fim, Ostra passou a gesticular, falar para seres alados, sorrir desatinado e, para finalizar, fechou-se. Ninguém notou. Porque depois que adquiriu o celular desenvolveu esta mania de Macbeth, de conversar e rir sozinho.

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2008

Elegia X

Elegia para meu avô André

O Riachão das Neves fala comigo
em suas funduras.
O verde vale
de acolhimento vulcânico
tresanda a cana, mel
e terna rapadura.
Ainda sigo os asnos insolentes
nas cacimbas,
as ruas estreitas, casas genuflexas
endereçadas aos solilóquios tristes.

Por ali passou meu avô André
pastoreando cobras,
ordenhando peçonhas,
convencendo os répteis
ao homizio das furnas.

Ninguém guardou seus exorcismos,
suas benzeções, sua simples magia
de pescador e santo.

No angical,
enlaçado de raízes,
repousa o mago André, o herbolário.
Há pouco, campeava o pé-duro xucro nos gerais.
Há pouco, consultava o bornal de curas.
E ia reunindo as cobras benfazejas,
convertendo-as á paz,
evangelizando-as para a aceitação
dos humanos imperfeitos.

André passava a mão sobre as cabeças dos filhos
e procurava limpar seus horizontes.
André padecia, discreto,
a dor futura dos filhos
ao peito pressentida, em secreto.

Quando André quis morrer,
mandou buscar os tambores
da Folia do Divino.
Zumbou a zabumba. Tiniu a viola.
Sofreram os cantos da despedida.
Quando fez silêncio a liturgia santa,
André recolheu, contrito, sua alma humilde.
Naquele entardecer
o gado pé-duro lamentou.
O marruá gemeu, cavou a terra,
olhou choroso o poente
e as vacas, orfeônicas, prantearam
até se apagar a luz do dia.

Réquiem para um bosque



Aidenor Aires



Ali corria um córrego. Depois um fio de água. Hoje nada. Assoreou. Mas as gameleiras, angicos, imbaúbas, guapevas, brotos de aroeira, jatobazeiros, ipês, resistem. No verde das árvores e do chão reina aveludada a braquiária e algumas moitas de colonião, alienígenas, sustento da cultura goiana. Algumas árvores novas, plantadas à nossa escolha, nas voçorocas que não foram loteadas e vendidas, sufocam o atrevimento de capim jaraguá e meloso, restantes. É a lição dada aos menininhos no dia da árvore. Plantamos nossa mudinha. Vamos dormir surdos ao rosnado das motos serras. Não tenho carteirinha pra falar de meio ambiente. Disso, sei pouco. Mas, fiz estilingue, bodoque, cabo de enxada e todos os meus brinquedos. Também devo às frutas do campo, aos lambaris e tambiús, aos galhos das árvores, os nutrientes e o corpo que me trouxeram até aqui. Fruta de ema, gabiroba, mama cadela, articum, cagaita, gravatá, colhia-se no cerrado ralo, de um ou dois pelos. Ingá, bacopari, veludo branco, vermelho, guapeva, jaracatiá, banha de galinha, jatobá, era nas matas beirando o Botafogo, Anicuns, Meia-Ponte, João Leite. Conservo uma relação útil e afetiva com estas coisas, legitimada por minha infância pobre perdulária de liberdade. Carmo Bernardes, que conhecia como ninguém, a textura, serventia e sabor, de todas as coisas do cerrado, com seu jeitão de socó espiando piaba, a mão no bolso, um pouco enviesado, e os olhos lá na frente, lecionava: - Companheiro, escrever tem que servir pra alguma coisa. Para ajudar o mundo, para melhorar o ser humano. E, um pouco lírico: - Nós somos feitos de tudo que existe: ar, os sais da terra, a água. O sol e chuva. A vida que está na formiga, na árvore, no pássaro é a mesma. Qualquer ferida em um desses vizinhos da cadeia da vida acaba doendo em nós. É por isso que volto ao assunto. O bosque que havia no território do Jóquei Clube, na Anhanguera com a Rua Três. Arrasaram tudo neste fim de ano. Ficou o buraco. O silêncio. Alguém justificou o desmatamento: Aquilo era propriedade privada. Pedro Ludovico que ali brincou carnavais e exibiu engomados ternos de linho branco ao som de La Cunparsita, não pensava em fim tão aristocrático. Pedro revolve-se no túmulo. Com ele, estrebucham D. Gercina, Venerando de Freitas Borges, Colemar Natal e Silva Amália Hermano e seu Maxi. Mesmo com a conivência das autoridades e seja legal, como os cartões de crédito que o governo dá para a farra de seus ministros, é crime contra a cidade e a natureza. Nem é preciso saber nomes dos envolvidos. Há um argumento padrão, irresistível: O país está cheio de crimes maiores. O que significam umas árvores? As lembranças de quem gostava delas? Uns micos que saltavam nos galhos? Uns passarinhos tolos que teimavam em incomodar os ouvidos da gente? Ou mesmo um pouquinho de beleza? O gosto excêntrico de respirar oxigênio? O dinheiro tudo resolve. Aqui e agora... Porque a Dona História não perdoa. E, ainda, leitores, creiam, pode haver o Inferno.