NAZARENO CONFALONI ENTRA NO CÉU
Aidenor Aires
(Poema escrito em homenagem a Frei
Confaloni, na ocasião de sua morte, em 04 de junho de 1977. Hoje, data de seu
nascimento, comemora-se também seu centenário.)
Te conheci
tarde
como conheci
Zé Décio, um dia antes de sua morte.
E te vejo
agora,
anjo barroco
e rotundo
despojado de
asas
e sério.
Cobriram tua
humildade com linho,
com este
barrete alvo
e eu venho
tocar tuas mãos frias,
agitar o
lenço
e ver a
última vez
as tuas
sandálias.
É certo que,
ser impuro, não sei os teus caminhos,
Por isso não
trouxe um bornal de paçoca,
Um quarto de
rapadura e uma moringa de água.
Não sei se é
permitido bagagens
nem farnel
para onde
vais, assim, definitivo.
Não sei se
passarás a nado
um lago escuro
e precises de uma candeia de cera
em tua
sombra.
Não sei se
te espera um barco, um potro arisco,
ou mesmo um
asno bíblico e humilde
de onde
continuarás com as sandálias tocando o chão.
Não sei se
há música nesse teu caminho,
por isso não
trouxe os atabaques de minha gente humilde,
que também
foi tua, e que serviste.
Não trouxe o
berimbau nem as cuícas
que, por certo,
gemerão nessas malocas
uma dor mais
antiga.
Cobriram-te
com este barrete alvo
e até os pés
desceram
as dobras do
linho
e ficaste
assim, um pouco sério,
neste pesar
definitivo.
Não sei se
os tempos são os mesmos
e o céu
cristão permaneça antigo.
Creio que te
darás muito bem com Deus,
que ficará
coçando os picumãs eternos
da barba
olhando
quadros teus.
Não sei se
já criaram aí,
se é para aí
que vais com tuas sandálias
e teu pano
de linho, um ateliê para os pintores,
não me
consta que esses ofícios
fossem bem
vistos no céu.
Houve sempre
alaúdes
eternamente
afinados
para legiões
de anjos afeminados.
Nunca soube
de operários no céu,
e o que aí
chegou, aquele da pedra,
virou
leão-de-chácara.
Se os tempos
forem os mesmos
e Deus
reinar eternamente sobre os pobres mortais,
vais te dar
mal
nesses
confins de eterna luz
e nuncamais.
Andarás
pelos corredores do empíreo
com teus
cavaletes e teus quadros, espalhando
pincéis e
borrifando o rosto absoluto
com essas
manchas da terra.
Como
poderão, ao lado do Altíssimo,
as tuas
madonas negras
de rosto
esférico
e olhar
tristíssimo
ficar entre quérulos
anjos tagarelas?
Depois os
lixeiros do céu implicarão
com teus
pincéis, se por aí não encontrares
um Fra
Angélico, um Da Vinci
e mesmo, que
será melhor,
um Van Gogh,
um Picasso,
um Portinari
ou Di Cavalcanti muito fogoso
com um
batalhão de mulatas,
será dura a
vida, se as coisas não mudaram.
Dizem que a
censura no céu
é coisa
dura. Tentaram reeditá-la na terra
e, por mais
que dura fosse,
nunca chegou
aos pés da coisa eterna.
Por cero
implicarão com teu sorriso,
com teu
vinho,
com o modo
como pisas
e teu jeito
de ficar
e ser
sozinho.
Eu venho
tocar as tuas mãos frias,
agitar o
lenço
e ver a
última vez tuas sandálias.
Não sei se
para onde vais
ouve-se os
ruídos da terra,
E se adianta
encher-te de recados
Como se a morte
te fizessem estafeta do céu.
Creio que
estás fatigado da miséria humana,
das
injustiças, das opressões,
e precisas
descansar
de tantas e
tantas peregrinações.
Por isso não
te peço que incomodes
tua nova
vida com suas coisas novas:
a casa que
arrumar, uns cavaletes novos, os pincéis,
as telas, um
lugar onde pintar,
se houver o
que pintar, exceto o rosto de Deus,
nesse mundo
exemplar.
Não te peço
que incomodes a paz celestial
E chegues aí
logo criando caso com reclamações
aos pés da Mãe-de-Deus,
que o
Incriado fez para si,
temendo a
solidão.
Não te peço
que insultes o Absoluto com nossas querelas,
Isso é coisa
que devemos resolver.
Não te peço
que intercedas pelos injustiçados,
que peças
luzes para os que governam,
que advogues
pela família,
maldizendo o
divórcio.
Estou certo
de que isso é outro negócio
e cada um
tem o governo
e a
injustiça que aguenta.
Te conheci
tarde
Como conheci
Zé Décio, um dia antes de sua morte.
Mas venho
tocar tuas mãos frias,
agitar o
lenço
e desejar
boa viagem.
Que se
arrume logo a tua vida
nessas
eternas paragens.
e que se
abra uma individual no céu,
mal acabada
a viagem.