sexta-feira, 27 de janeiro de 2017

CHEGUEI COM A CABEÇA PENDIDA/ Aidenor Aires





De minha antologia pessoal


  
Cheguei com a cabeça pendida

Cheguei com a cabeça pendida.
Flor decepada do mundo.
Cintilância do aprendizado para o abismo.
Orfeu irregressado, trouxe ainda sob as axilas cansadas,
o fardo do poema.

Aos deuses, ergo minha libação.
Aos deuses, que me fizeram rouxinol.
Subtraio-me disperso
e devolvo a canção que evola de minha carne,
das aras em cinzas,
e já ninguém comove.

Devolvo a todo o belo
o que, veloz, em mim brilhou
sem pressa
do sonho de cantar e ser completo.


UM POEMA DE ÍTALO CAMPOS


Da série: Poemas não publicados (veis)

   DA VARANDA



Ítalo Campos.
Marataízes, a 40 Km
Se avista d´aqui.



Como procissão, os vagalumes da cidade
Pirilampam num cortejo de festa
À rainha da noite.
Vejo o mar inquieto e sonante
A enviar para a praia as impurezas do dia e
Carregar para si meus sonhos.
O mar é salgado das lágrimas
Das mulheres de Anchieta e Lisboa
Pois o mar não está mais para peixes
E descobertas.
Oh, o mar que separa e une,
Reúne e atravessa.
Antes do mar avisto telhados curvos
Abrigando dor e saudades,
Quem sabe algum amor.
Sobre eles, o pára-raio e as palhas.
As palhas em balanço de guardar.
Sons do universo em voz de vento
Trança palhas em movimento.
Avisto pára-raio estático pronto
Para a tormenta.
Eu,
Eu que a natureza observo, amoroso,
Não tenho retorno, nenhum sinal,
Nenhum conforto em minha solidão
E dor. Existencial!
A noite segue longa gotejando
A breve vida inteira.



quarta-feira, 25 de janeiro de 2017

NOITE NA TAVERNA OU NOITE NO BOTECO

NOITE NA TAVERNA OU NOITE NO BOTECO
Ercília Macedo-Eckel
Para Luiz de Aquino
Uma Noite do Século XXI
Estamos na Praça da Cirrose, Boteco Bate-Papo, do Hamilton, no Setor Oeste, Goiânia. Criamos aqui uma roda literária acompanhada de petiscos e muita caipirosca. E não há como fugir das músicas interpretadas por duplas sertanejas goianas, para a tristeza de alguns de nosso grupo.
Depositamos nossos celulares numa cesta e, depois de algumas doses e conversas leves sobre musas, últimas leituras, etc., chegamos à morbidez dos assuntos políticos, da corrupção e outras mazelas que assolam o Brasil e o mundo: barbárie nos presídios - o quarto poder no país - Estados em falência, cheios de “elefantes brancos”, acidentes trágicos, soterramentos, aguaceiro, epidemias e surtos diversos. Finalmente, discutimos a degradação da política e dos costumes americanos na pessoa egocêntrica e narcisista do presidente Trump, recém-empossado. Agora, correm na mesa espetos de contrafilé, travessas de feijão tropeiro e de mandioca. E mais goles de caipirosca, antes das falas e reflexões de cada personagem sobre literatura.
Gabriel Ene
Nos últimos dias tem havido uma polêmica nas redes sociais sobre “literatura de boteco”. Seria a nossa, pejorativamente? Quem me ajudaria, aqui, a melhor conceituar ”alta literatura”, a formar o cânone dos supremos escritores-modelo, o arquétipo do bom gosto? Não me refiro ao “cânone didático” tão odiado pelos estudantes de nosso país e do qual muitas vezes fiz parte. Mas sim às várias listas propostas por escritores-críticos de renome internacional que visavam e visam à comparação e à análise de tudo o que fora escrito antes, preferencialmente desde Homero. Acredito, Miguel, que, nesse contexto, os afortunados leitores-críticos serão capazes de distinguir “literatura de boteco” de “alta literatura”. O problema é a carência de leitura por aqui.
Miguel Jota
Verdade, amigo! Sei as regras do jogo literário. Além de seu sentido lúdico, ativa a imaginação, a criatividade, como nosso jogo de bilhar nessa mesa. Minha maior preocupação é para que a bola-capítulo não se suicide e seja deletada, sepultada na lixeira. Daí minha diversidade: do campo das artes plásticas ao palco, do palco à literatura, como formas de driblar a realidade, “promovendo delírios, feito febre” nas “Copas e nas Cópulas”. Selma, os amantes dos bons escribas deveriam conhecer “Altas Literaturas”, de Leyla Perrone-Moisés, a fim de aprofundarem seus julgamentos de valor. Pois o melhor crítico é aquele que também cria textos. Quem cultiva jabuticaba fala melhor sobre jabuticaba, não é mesmo?
Selma
Peça aquela rabada ao molho. Dizem que é a melhor da cidade.
Conheço essa obra de Leyla Perrone e concordo com o que você acabou de dizer. E acrescentaria que o bom crítico analisa e discute o poema, o texto; não o poeta-autor, o escritor. Podemos considerar, ainda, que a diferença não está entre os vários conceitos de cultura, mas entre a “cultura e a descultura” de quem escreve e de quem julga o texto. E que há também o silêncio diante das grandes ( ou medíocres) obras de arte. Pois gritos, falatórios e ofenças ameaçam a literatura e o ato de criação, não é Mestre?
Jota Fernandes
Isso mesmo e mais: precisamos dessacralizar a literatura, levá-la aos botecos, torná-la profana, exposta. Isto é, abrir caminhos para produções emergentes e não canônicas. E, para julgá-las, melhor seria nos submetermos à categoria do escritor-crítico, aquele que, além de publicar suas obras – também faz crítica literária – depois de saber “tudo o que é, foi e será” até chegar ao Paraíso de um sábio julgamento. Concorda, Augustinha?
Augustinha
Sim, Mestre. Essa abrangência nos permitiria uma leitura comparativa dos temas, no tempo e no espaço, entre as diversas classes de escritores com os quais podemos aprender e apreciar vários aspectos da criação literária.
No Brasil temos uma deficiência séria, como já foi dito aqui. Mal lemos e escrevemos em nossa própria língua, diferentemente de países europeus, por exemplo, nos quais o escritor e leitor são fluentes em mais de uma língua. O conhecimento e a erudição vêm depois da leitura e da escrita ingênuas. Chegam com o tempo, a experiência e deixam para a posteridade a língua melhorada. Até mesmo aquele tipo de linguagem utilizada por um “escritor de boteco”, não é mesmo, Luís?
Luís
Deixe-me, antes, tomar um gole de caipirosca. Esse é para o santo...
Tenho refletido muito sobre isso nos últimos dias e cheguei à seguinte conclusão:
Se sou “escritor de boteco”, devo submeter-me à crítica sociológica, que tem como ponto de partida a expressão cultural e civilizatória de um povo, no caso os goianos, nas diversas fases do desenvolvimento desse tema (“literatura de boteco”) nas obras publicadas em Goiás. Isso, porque deve haver uma interação escritor-sociedade, ligada aos problemas de seu grupo; à língua, que é uma instituição coletiva; à mensagem e texto produzido, que devem ser de interesse do leitor, o qual vive os mesmos problemas políticos, sociais, financeiros, religiosos e éticos do autor. Dessa forma, percebemos que há uma pluralidade de enquadamentos na produção e leitura do texto literário, sendo o leitor um co-produtor, caso tenha a capacidade de captar-lhe o sentido.
Pessoal, nossa noite avança, chega a madrugada misteriosa, de anjos e demônios, bandidos. Cadê a saideira?
O Último Gole
Já estamos enxergando Dionísio com uma jarra transparente, cheia de vinho tinto: entre luz e trevas. Nossa máscara cai diante da epifania divina. Todos falamos ao mesmo tempo, num diálogo dramático. Impossível um fruidor que nos entenda, pois, nesse momento, retratamos uma sociedade fragmentada, egoísta, despótica, cuja língua se dispersa em confusão babélica, conforme as condições de sua produção no aqui e agora dessa saideira.
E quem se livra desse diálogo teatral? Praticamente todos falam ao mesmo tempo, perdem o foco, fogem do assunto, fazem digressões repetitivas e dificilmente aceitam o desvio.
Os mais alterados em suas falas já esperam um parente ou amigo, a fim de levá-los de volta para casa. De resto é só monólogo interior e, como nos mistérios gregos, entraremos em contato direto com o Outro-Mundo, aquele dos deuses.
Então até, leitores.
www.erciliamacedoescritora.com.br




PREMIO NOBEL PARA GABRIEL LNASCENTE
                                                                                Aidenor Aires*



Muita coisa se passou depois de janeiro de 1950, data em que emergiu e ganhou passos o poeta Gabriel Nascente. Nosso encontro se deu, pela primeira vez, por volta de 1958/59. Em 1958 havia falecido seu pai, Antônio Estrela Nascente, o Tonico Nascente, prematuramente, com apenas 36 anos de idade, deixando viúva D. Antônia Barbosa Nascente, com uma prole de Sete filhos, sendo Gabriel o quaro entre eles.  Mudaram-se, por algum tempo, para a Vila Nova, onde eu já vivia. Ali nos conhecemos ainda crianças. Hoje, ao completar 67 anos, o menino da rua 74, no antigo Bairro Popular, carrega na estrutura frágil e no olhar sempre ébrio de metáforas o luminoso peso de 50 anos, quase a vida inteira, de poesia. Haveria muito que falar de nosso reencontro e convivência nesse hiato de tempo, ou hiato de nossas vidas paralelas. Mas isto é assunto exorbitante para o mero registro que faço a pretexto da efeméride.  Desde o ano de 1964, nos corredores da ilustre Escola Técnica Federal de Goiás, herdeira da antiga Escola de Aprendizes e Artífices da Cidade de Goiás, até o dia de hoje, Gabriel não viveu um dia sequer sem poesia. Recordo-me de um dia, naquele ano aziago para o Brasil (64), que Gabriel nascente, após assistir a um espetáculo no anfiteatro da escola, se empolgou com a performance da trupe, principalmente com seus monólogos poéticos com temas contemporâneos enfocando os problemas do país, naqueles dias nervosos que antecediam o golpe de 1964. No dia seguinte, Gabriel, que vivia um início de adolescência conflitado e inquieto, apareceu na sala de aula com os rabiscos de um texto denominado Nordeste, sombra dos monólogos que presenciara na peça exibida no auditório da Escola. Pôs-se logo a recitar seu texto de intenção fortemente dramática, vociferando contra as mazelas do Nordeste, assunto muito em voga: seca, fome, severinos, carcarás, migração, etc. O diferencial era que, ao declamar o texto trágico, o poeta nascente, sem trocadilhos, exibia simiologia cômica, gestos grotescos, expressões faciais histriônicas que espantavam o pequeno auditório de sua sala de aula. A reação momentânea foi explosões de gargalhadas, aplausos e uivos da turba adolescente. A partir daí o menino que vivia correndo de bicicleta, comprando uma espingarda para atirar no bosque do Botafogo, construindo submarino para imergir nas águas do ainda limpo e piscoso Meia Ponte, subindo nos telhados do Bairro Popular e frequentando diariamente o departamento de orientação educacional e psicologia da escola, passou a dedicar-se à produção de poemas. Tinha muito próximos, este depoente que já rabiscava alguns versos e declamava os longos poemas de Castro Alves, Eduardo Jordão, um estranho mulato que também escrevia versos manquitolantes, apodado por Gabriel de “Touro”; além de professores intelectuais, como Bernardo Élis, José Lopes Rodrigues, Geraldo da Paixão, Jorge Félix de Sousa, Edmar Fleury, o orador espírita Niso Prego, professoras Maria da Cunha, Gilka Machado, lembrando apenas alguns. Na tipografia da escola descobriu o livro Primeira Chuva, de Bernardo Élis, Pássaro de Pedra e A Poesia em Goiás de Gilberto M. Teles, Contos para Ler de Pé, de Eduardo Jordão, Tardes do Nada de Edir Guerra Malagoni e a obra inaugural de Yêda Schmaltz, Caminhos de Mim. Nesse ambiente de efervescência política e cultural, Gabriel abraçou integralmente o partido da poesia. Dia e noite lia, escrevia e fazia contatos com escritores que ponteavam a cena goiana, indo dos consagrados aos emergentes do Grupo de escritores Novos, o GEN. A lavoura poética que iniciara em 1964, já havia produzido, no início de 1965, o opúsculo Os Gatos, trazendo apresentações de Bernardo Élis e Jesus Barros Boquady. Desde o insight inicial, o poeta não mais deu sossego a ninguém em constante furor poético e inadaptação à disciplina escolar. Submetido a exames psicotécnicos e psicológicos, o furor poético de Gabriel punha em pânico sua mãe, D. Antônia, e os orientadores e dirigentes da escola. O aparente desequilíbrio mental do poeta, frente ao que se entendia por normalidade, levou a escola, inspirada pelo professor Geraldo da Paixão, a encaminhá-lo a um profissional da psiquiatria conceituado em Goiânia. Após consultas, oitivas e procedimentos de sua ciência, o facultativo exarou peremptório: Não tem doença mental, nem transtorno psíquico. É poesia mesmo. Isto não tem remédio”.  A palavra do médico representou o habeas corpus, a ordem de soltura para o poeta e sua arte. Olhando o horizonte precluso de 50 anos vejo que Gabriel não envelheceu. Parece que seu corpo com apetite de passarinho foi ficando menor, mais frágil como maneira de acolher o menino, o arco da lira plangendo os vagidos da infância que não deixam de afligir a insônia do mundo. São mais de cinquenta livros, numa cascata crescente de indisciplina formal e saraivadas de símiles, polissemias, animismos, metonímias, hipérboles e metáforas. A vida escorre em pura linguagem. Em todo o discurso, o peso das longas interjeições e aflitas interrogações. É uma fala incansável de descobertas e espantos. Linguagem de pouca alegria e muito sofrimento. Sem poder ser outra coisa, esgota-se em pura poesia. Os problemas do mundo, o sofrimento dos homens, as perdas da infância permanente, as paisagens, as cidades e os amores estão sempre aí, na sua palavra de inflamação enferma, captados de uma forma mediúnica, abraçam uma realidade para além do real, ou cria um real arquetípico, num tempo de total isenção, e impertencível. Suas intensas leituras de inúmeros autores marcam aqui e ali, o mapa das influências confessáveis que alimentam o caudal de sua criação. No fundo, porém, de sua floresta de signos vão se debatendo plangentes significados e busca da forma visível de sua expressão. Canta a liberdade total, uma quase escrita automática que expõe, depõe, exalta e demole parâmetros lógicos, estéticos e técnicos da elaboração poética. Amado, admirado e, não raro discriminado, punido em sua poesia por ser quem é, o poeta assombra e enche de luminoso talento nossa época sem valia. Sua sensibilidade porosa absorve e transfigura as aflições do mundo e dos homens. Transmite, numa compreensão simbólica a descrença, o horror, o predomínio do mal e da insensibilidade, a falência do sonho humano.  Mais de cinquenta livros atestam sua permanente insatisfação, como se dissesse que não basta um poema, nem dez, nem cem, nem mil poemas. É necessário um rio, um oceano, uma galáxia de poemas dirigidos talvez a leitores do futuro. Gabriel ultrapassa, por sua estranheza, o conceito acadêmico do poema e abre espaço para indagações multidisciplinares de sua produção. No veículo de sua vasta produção editada traz o testemunho avalista de grandes nomes da literatura contemporânea que, certamente não lhe dedicariam comentários e fartos elogios se sua obra não merecesse deles o inteligente acatamento. Nem merecia ele os prêmios que arrebanhou. Gabriel nestes cinquenta anos de cantos e jeremiadas eleva a poesia ao patamar de ofício divino, como sempre fizeram, os vates e aedos. Por tudo isso, só podemos compreender sua poesia como mistério e sua voz como profecia.  Mesmo que ainda torçam o nariz para sua figura frágil com ar de desamparo, mesmo que não chegue à Academia Brasileira de Letras, Gabriel merece o Prêmio Nobel. Não há no Brasil, nem na literatura conhecida uma voz tão autêntica, tão pura e original a noticiar o drama do homem, no que tem de local, contemporâneo, globalizante e universal.  Celebro beleza de sua poesia. Celebro a riqueza e o encanto de sua obra.  Conclamo as inteligências e as instituições culturais e políticas de Goiás, como homenagem lídima, nas comemorações desse meio século de inspiração e canto, a indicação de seu nome para o próximo Prêmio Nobel de literatura.  Isto honra o poeta. Isto honra nossa terra e nosso tempo.



·         Aidenor Aires – escritor, membro da Academia Goiana de Letras e Instituto Histórico e Geográfico de Goiás.

NAZARENO CONFALONI ENTRA NO CÉU





NAZARENO CONFALONI ENTRA NO CÉU
                                                          Aidenor Aires

(Poema escrito em homenagem a Frei Confaloni, na ocasião de sua morte, em 04 de junho de 1977. Hoje, data de seu nascimento, comemora-se também seu centenário.)


Te conheci tarde
como conheci Zé Décio, um dia antes de sua morte.
E te vejo agora,
anjo barroco e rotundo
despojado de asas
 e sério.

Cobriram tua humildade com linho,
com este barrete alvo
e eu venho tocar tuas mãos frias,
agitar o lenço
e ver a última vez
as tuas sandálias.
É certo que, ser impuro, não sei os teus caminhos,
Por isso não trouxe um bornal de paçoca,
Um quarto de rapadura e uma moringa de água.
Não sei se é permitido bagagens
nem farnel
para onde vais, assim, definitivo.

Não sei se passarás a nado
um lago escuro e precises de uma candeia de cera
em tua sombra.
Não sei se te espera um barco, um potro arisco,
ou mesmo um asno bíblico e humilde
de onde continuarás com as sandálias tocando o chão.

Não sei se há música nesse teu caminho,
por isso não trouxe os atabaques de minha gente humilde,
que também foi tua, e que serviste.
Não trouxe o berimbau nem as cuícas
que, por certo, gemerão nessas malocas
uma dor mais antiga.

Cobriram-te com este barrete alvo
e até os pés desceram
as dobras do linho
e ficaste assim, um pouco sério,
neste pesar definitivo.

Não sei se os tempos são os mesmos
e o céu cristão permaneça antigo.
Creio que te darás muito bem com Deus,
que ficará coçando os picumãs eternos
da barba
olhando quadros teus.
Não sei se já criaram aí,
se é para aí que vais com tuas sandálias
e teu pano de linho, um ateliê para os pintores,
não me consta que esses ofícios
fossem bem vistos no céu.

Houve sempre alaúdes
eternamente afinados
para legiões de anjos afeminados.
Nunca soube de operários no céu,
e o que aí chegou, aquele da pedra,
virou leão-de-chácara.
Se os tempos forem os mesmos
e Deus reinar eternamente sobre os pobres mortais,
vais te dar mal
nesses confins de eterna luz
e nuncamais.

Andarás pelos corredores do empíreo
com teus cavaletes e teus quadros, espalhando
pincéis e borrifando o rosto absoluto
com essas manchas da terra.
Como poderão, ao lado do Altíssimo,
as tuas madonas negras
de rosto esférico
e olhar tristíssimo
ficar entre quérulos anjos tagarelas?

Depois os lixeiros do céu implicarão
com teus pincéis, se por aí não encontrares
um Fra Angélico, um Da Vinci
e mesmo, que será melhor,
um Van Gogh, um Picasso,
um Portinari ou Di Cavalcanti muito fogoso
com um batalhão de mulatas,
será dura a vida, se as coisas não mudaram.

Dizem que a censura no céu
é coisa dura. Tentaram reeditá-la na terra
e, por mais que dura fosse,
nunca chegou aos pés da coisa eterna.
Por cero implicarão com teu sorriso,
com teu vinho,
com o modo como pisas
e teu jeito de ficar
e ser sozinho.

Eu venho tocar as tuas mãos frias,
agitar o lenço
e ver a última vez tuas sandálias.
Não sei se para onde vais
ouve-se os ruídos da terra,
E se adianta encher-te de recados
Como se a morte te fizessem estafeta do céu.

Creio que estás fatigado da miséria humana,
das injustiças, das opressões,
e precisas descansar
de tantas e tantas peregrinações.
Por isso não te peço que incomodes
tua nova vida com suas coisas novas:
a casa que arrumar, uns cavaletes novos, os pincéis,
as telas, um lugar onde pintar,
se houver o que pintar, exceto o rosto de Deus,
nesse mundo exemplar.

Não te peço que incomodes a paz celestial
E chegues aí logo criando caso com reclamações
aos pés da Mãe-de-Deus,
que o Incriado fez para si,
temendo a solidão.
Não te peço que insultes o Absoluto com nossas querelas,
Isso é coisa que devemos resolver.
Não te peço que intercedas pelos injustiçados,
que peças luzes para os que governam,
que advogues pela família,
maldizendo o divórcio.
Estou certo de que isso é outro negócio
e cada um tem o governo
e a injustiça que aguenta.

Te conheci tarde
Como conheci Zé Décio, um dia antes de sua morte.
Mas venho tocar tuas mãos frias,
agitar o lenço
e desejar boa viagem.
Que se arrume logo a tua vida
nessas eternas paragens.
e que se abra uma individual no céu,
mal acabada a viagem.


domingo, 1 de janeiro de 2017

NESTAS FESTAS DE FIM DE ANO








NESTAS FESTAS DE FIM DE ANO


Nestas festas de fim de ano

cumprimos solidárias promessas,
sonhos humanos de estima fraterna 
e desinteressado amor.
Invocamos os mitos amorosos de esperados profetas,
crentes nas possíveis manhãs para renascer.
Por momentos, enquanto é farto o pão,
embriagante o vinho,
infinitas as luzes,
vivemos dias sem remorsos.
Não estão à nossa mesa os desterrados do mundo,
os desertados do amor.
Não vêm à ceia abastada
os miseráveis das ruas, os refugiados sem abrigo.
Nossos gritos de exaltação,
nossas salvas e vivas não incluem a mudez 
que cala a injustiça.
Fazemos votos de amor perene
e de perene encontro de corações e almas.
Nada disso nos absolve.
Nada nos conduz
à utopia original que desenhamos
no abandono humilde de uma manjedoura de Belém.
Nada disso nos comove mais.
E de alguma cruz de atroz e luminosa memória 
amanhã, outra vez, conciliados,
NOS ESQUECEREMOS
.

PAPAGAIO REAL, VOLTAR PARA PORTUGAL!





PAPAGAIO REAL, VOLTAR PRA PORTUGAL!





   Neste início do na de 2017, deixando em esforço de esquecimento o que se finda, cabe algumas reflexões sobre enfermidades teimosas que acometem o corpo do Gigante deitado. Uma vez, nos tempos da última ditadura, assisti à palestra de uma alta patente do regime, egresso da Escola Superior de guerra. A conferência fazia parte da disciplina Estudos de Problemas Brasileiros, então em voga nas universidades. Após desfiar com entusiasmo argumentos geopolíticos, território de configuração continental, riquezas estratégicas, e demais itens pertinentes à disciplina nomeada pelo sueco Rudolf Kjellén, demorou no quesito população. Concluiu, em minúscula síntese, digo eu, que todos esses aspectos de base material eram favoráveis e, ufano, exaltou esses infindáveis, infinitos e disponíveis recursos a serem mobilizados para alavancar o despertar do Gigante sonolento. Havia, porém, um entrave. A dúvida sobre o homem brasileiro. Não se tinha certeza sobre a viabilidade desse estranho ser vindo de uma colonização criminosa, do estupro e do massacre dos indígenas, do sangue da escravidão. Nem mesmo a mestiçagem que se formou depois podia dar certeza das faculdades de progresso dessa heterogênea formação humana. Partilhava o conferencista de ideias comuns a estrangeiros e brasileiros. Aquelas de que o homem brasileiro, como produto infeliz de uma miscelânea étnica cultural, estava fadado ao fracasso e, possivelmente com ele, o país. Não quero dar razão àquele teórico autoritário filiado a o euro centrismo excludente e preconceituoso. Mas, os primeiros cronistas informam que os portugueses que aqui vinham buscar riquezas, tinham como objetivo levar o que podia para Portugal. Pau Brasil, ouro, pedras preciosas, animais, plantas, açúcar, suor e sangue humano. Não queriam criar raízes e só defendiam a terra quando suas riquezas eram ameaçadas, ou corriam risco as fronteiras da fé e do Império. Brasileiro não podia ter escola, livro, estradas ou poder de decisão. Como herança desse desamor inicial, parece que herdamos e continuamos cultivando um ferrenho desamor por esta terra. Pelo menos a maioria da elite que tem poder. Apropriam-se do que tem o país, das riquezas naturais, daquelas produzidas pela transformação industrial e, o que parece pior, apropriam-se dos sentimentos e dos sonhos da população. Como os portugueses, ensinavam aos seus louros: “Papagaio real, voltar para Portugal. Desprezo nauseante cultivam pela terra e a gente. Enriquecem na esperteza, confundem o público com o privado. Pouco se importam com a miséria, a fome, a ignorância. Se possível, aproveitam-se dessa condição das extensas massas miseráveis, dedicando a elas um paternalismo subjugante, mantendo assim clientela permanente de suas ambições gamonais. O brasileiro, tratado por diversos rótulos redutivos, como preguiçoso, malandro, “safadão”, lubrico, abestado, em suma, irresponsável, sofre a contínua lavagem cerebral que o leva a aceitar como normal, e até motivo de orgulho a ser mostrado e exportado. A baixa estima, o coitadismo, o cinismo ou o histrionismo passam a ser características exaltadas pela mídia, pela publicidade, pela moda e, claro, pela política. Basta ver os apodos dos candidatos nas eleições. E os que são eleitos. O jogador de futebol analfabeto, o que nunca leu um livro e vira presidente. O religioso inculto, o policial criminoso, o traficante, e até o abestado ou qualquer poste. A gente sem auto estima, acostumada a fazer rir ou rir de si mesma. Acha normal essas escolhas, porque, em fim, escolhe alguém igual a si mesmo. Dele se cobra apenas o espetáculo, o carnaval, a torcida histérica. Neste cenário não há lugar para pensadores, professores, cientistas e estudiosos. São esquecidos, desestimulados e só são reconhecidos, muitas vezes, depois de serem consagrados no exterior. Não queria ir por esse caminho pessimista. Não penso que a população brasileira se divida em lesos e aproveitadores. No correr do tempo negou-se a nossa gente oportunidades, educação, tratamento digno, cevando a baixa estima que faz nossos filhos fugiram para outros países exercitarem ofícios degradantes, clandestinos e humilhantes. Quando voltam, com alguns dólares, sentem-se maiores, mais gente, mais feliz - superiores. Nunca concordei com esse desenho do brasileiro. Passei minha vida observando, discutindo nossa cultura, sondando nossas identidades. Como fruto mestiço da exclusão,o que vejo é resistência. É luta desigual. Poucos têm tudo. Enchem as burras e depositam em contas nos paraísos fiscais. Lavam dinheiro em fazendas, boiadas, leilões e laranjais, que não produzem frutas, mas usufrutos. Não fora a Lavajato, jamais saberíamos a extensão do saque, do esbulho, do parasitismo que as chamadas elites políticas praticam contra a nação. Para eles, de riso alvar, caras recauchutadas e cabelos tingidos, nós somos o rebanho a ser tosquiado, sangrado, abatido. Cabe a nós demonstrar o contrário. Não deixar morrer o trabalho do juiz Moro, dos procuradores do MP, da Polícia Federal e dar a resposta à súcia, não só na indignação das ruas, mas no recôndito das urnas, exigindo inclusive dos partidos, a explicitação de seus programas e a seleção dos candidatos que impingem ao eleitor. Penso que este país já não é o mesmo. E que já estamos autorizados a ter alguma esperança.