PREMIO NOBEL PARA
GABRIEL LNASCENTE
Aidenor Aires*
Muita coisa se passou depois de
janeiro de 1950, data em que emergiu e ganhou passos o poeta Gabriel Nascente.
Nosso encontro se deu, pela primeira vez, por volta de 1958/59. Em 1958 havia
falecido seu pai, Antônio Estrela Nascente, o Tonico Nascente, prematuramente,
com apenas 36 anos de idade, deixando viúva D. Antônia Barbosa Nascente, com
uma prole de Sete filhos, sendo Gabriel o quaro entre eles. Mudaram-se,
por algum tempo, para a Vila Nova, onde eu já vivia. Ali nos conhecemos ainda
crianças. Hoje, ao completar 67 anos, o menino da rua 74, no antigo Bairro Popular,
carrega na estrutura frágil e no olhar sempre ébrio de metáforas o
luminoso peso de 50 anos, quase a vida inteira, de poesia. Haveria muito que
falar de nosso reencontro e convivência nesse hiato de tempo, ou hiato de
nossas vidas paralelas. Mas isto é assunto exorbitante para o mero registro que
faço a pretexto da efeméride. Desde o
ano de 1964, nos corredores da ilustre Escola Técnica Federal de Goiás,
herdeira da antiga Escola de Aprendizes e Artífices da Cidade de Goiás, até o
dia de hoje, Gabriel não viveu um dia sequer sem poesia. Recordo-me de um dia,
naquele ano aziago para o Brasil (64), que Gabriel nascente, após assistir a um
espetáculo no anfiteatro da escola, se empolgou com a performance da trupe,
principalmente com seus monólogos poéticos com temas contemporâneos enfocando
os problemas do país, naqueles dias nervosos que antecediam o golpe de 1964. No
dia seguinte, Gabriel, que vivia um início de adolescência conflitado e inquieto,
apareceu na sala de aula com os rabiscos de um texto denominado Nordeste,
sombra dos monólogos que presenciara na peça exibida no auditório da Escola.
Pôs-se logo a recitar seu texto de intenção fortemente dramática, vociferando
contra as mazelas do Nordeste, assunto muito em voga: seca, fome, severinos,
carcarás, migração, etc. O diferencial era que, ao declamar o texto trágico, o
poeta nascente, sem trocadilhos, exibia simiologia cômica, gestos grotescos,
expressões faciais histriônicas que espantavam o pequeno auditório de sua sala
de aula. A reação momentânea foi explosões de gargalhadas, aplausos e uivos da
turba adolescente. A partir daí o menino que vivia correndo de bicicleta,
comprando uma espingarda para atirar no bosque do Botafogo, construindo
submarino para imergir nas águas do ainda limpo e piscoso Meia Ponte, subindo
nos telhados do Bairro Popular e frequentando diariamente o departamento de
orientação educacional e psicologia da escola, passou a dedicar-se à produção
de poemas. Tinha muito próximos, este depoente que já rabiscava alguns versos e
declamava os longos poemas de Castro Alves, Eduardo Jordão, um estranho mulato
que também escrevia versos manquitolantes, apodado por Gabriel de “Touro”; além
de professores intelectuais, como Bernardo Élis, José Lopes Rodrigues, Geraldo
da Paixão, Jorge Félix de Sousa, Edmar Fleury, o orador espírita Niso Prego,
professoras Maria da Cunha, Gilka Machado, lembrando apenas alguns. Na
tipografia da escola descobriu o livro Primeira Chuva, de Bernardo Élis,
Pássaro de Pedra e A Poesia em Goiás de Gilberto M. Teles, Contos para Ler de
Pé, de Eduardo Jordão, Tardes do Nada de Edir Guerra Malagoni e a obra
inaugural de Yêda Schmaltz, Caminhos de Mim. Nesse ambiente de efervescência
política e cultural, Gabriel abraçou integralmente o partido da poesia. Dia e
noite lia, escrevia e fazia contatos com escritores que ponteavam a cena
goiana, indo dos consagrados aos emergentes do Grupo de escritores Novos, o
GEN. A lavoura poética que iniciara em 1964, já havia produzido, no início de
1965, o opúsculo Os Gatos, trazendo apresentações de Bernardo Élis e Jesus
Barros Boquady. Desde o insight inicial, o poeta não mais deu sossego a ninguém
em constante furor poético e inadaptação à disciplina escolar. Submetido a exames
psicotécnicos e psicológicos, o furor poético de Gabriel punha em pânico sua
mãe, D. Antônia, e os orientadores e dirigentes da escola. O aparente
desequilíbrio mental do poeta, frente ao que se entendia por normalidade, levou
a escola, inspirada pelo professor Geraldo da Paixão, a encaminhá-lo a um
profissional da psiquiatria conceituado em Goiânia. Após consultas, oitivas e
procedimentos de sua ciência, o facultativo exarou peremptório: Não tem doença
mental, nem transtorno psíquico. É poesia mesmo. Isto não tem remédio”. A palavra do médico representou o habeas
corpus, a ordem de soltura para o poeta e sua arte. Olhando o horizonte
precluso de 50 anos vejo que Gabriel não envelheceu. Parece que seu corpo com
apetite de passarinho foi ficando menor, mais frágil como maneira de acolher o
menino, o arco da lira plangendo os vagidos da infância que não deixam de
afligir a insônia do mundo. São mais de cinquenta livros, numa cascata
crescente de indisciplina formal e saraivadas de símiles, polissemias,
animismos, metonímias, hipérboles e metáforas. A vida escorre em pura
linguagem. Em todo o discurso, o peso das longas interjeições e aflitas
interrogações. É uma fala incansável de descobertas e espantos. Linguagem de
pouca alegria e muito sofrimento. Sem poder ser outra coisa, esgota-se em pura
poesia. Os problemas do mundo, o sofrimento dos homens, as perdas da infância
permanente, as paisagens, as cidades e os amores estão sempre aí, na sua
palavra de inflamação enferma, captados de uma forma mediúnica, abraçam uma
realidade para além do real, ou cria um real arquetípico, num tempo de total
isenção, e impertencível. Suas intensas leituras de inúmeros autores marcam
aqui e ali, o mapa das influências confessáveis que alimentam o caudal de sua
criação. No fundo, porém, de sua floresta de signos vão se debatendo plangentes
significados e busca da forma visível de sua expressão. Canta a liberdade
total, uma quase escrita automática que expõe, depõe, exalta e demole
parâmetros lógicos, estéticos e técnicos da elaboração poética. Amado, admirado
e, não raro discriminado, punido em sua poesia por ser quem é, o poeta assombra
e enche de luminoso talento nossa época sem valia. Sua sensibilidade porosa
absorve e transfigura as aflições do mundo e dos homens. Transmite, numa
compreensão simbólica a descrença, o horror, o predomínio do mal e da insensibilidade,
a falência do sonho humano. Mais de
cinquenta livros atestam sua permanente insatisfação, como se dissesse que não
basta um poema, nem dez, nem cem, nem mil poemas. É necessário um rio, um
oceano, uma galáxia de poemas dirigidos talvez a leitores do futuro. Gabriel
ultrapassa, por sua estranheza, o conceito acadêmico do poema e abre espaço
para indagações multidisciplinares de sua produção. No veículo de sua vasta
produção editada traz o testemunho avalista de grandes nomes da literatura
contemporânea que, certamente não lhe dedicariam comentários e fartos elogios
se sua obra não merecesse deles o inteligente acatamento. Nem merecia ele os
prêmios que arrebanhou. Gabriel nestes cinquenta anos de cantos e jeremiadas
eleva a poesia ao patamar de ofício divino, como sempre fizeram, os vates e
aedos. Por tudo isso, só podemos compreender sua poesia como mistério e sua voz
como profecia. Mesmo que ainda torçam o
nariz para sua figura frágil com ar de desamparo, mesmo que não chegue à
Academia Brasileira de Letras, Gabriel merece o Prêmio Nobel. Não há no Brasil,
nem na literatura conhecida uma voz tão autêntica, tão pura e original a
noticiar o drama do homem, no que tem de local, contemporâneo, globalizante e
universal. Celebro beleza de sua poesia.
Celebro a riqueza e o encanto de sua obra. Conclamo as inteligências e as instituições
culturais e políticas de Goiás, como homenagem lídima, nas comemorações desse
meio século de inspiração e canto, a indicação de seu nome para o próximo
Prêmio Nobel de literatura. Isto honra o
poeta. Isto honra nossa terra e nosso tempo.
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Aidenor Aires – escritor, membro da Academia
Goiana de Letras e Instituto Histórico e Geográfico de Goiás.
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