quarta-feira, 25 de janeiro de 2017

NAZARENO CONFALONI ENTRA NO CÉU





NAZARENO CONFALONI ENTRA NO CÉU
                                                          Aidenor Aires

(Poema escrito em homenagem a Frei Confaloni, na ocasião de sua morte, em 04 de junho de 1977. Hoje, data de seu nascimento, comemora-se também seu centenário.)


Te conheci tarde
como conheci Zé Décio, um dia antes de sua morte.
E te vejo agora,
anjo barroco e rotundo
despojado de asas
 e sério.

Cobriram tua humildade com linho,
com este barrete alvo
e eu venho tocar tuas mãos frias,
agitar o lenço
e ver a última vez
as tuas sandálias.
É certo que, ser impuro, não sei os teus caminhos,
Por isso não trouxe um bornal de paçoca,
Um quarto de rapadura e uma moringa de água.
Não sei se é permitido bagagens
nem farnel
para onde vais, assim, definitivo.

Não sei se passarás a nado
um lago escuro e precises de uma candeia de cera
em tua sombra.
Não sei se te espera um barco, um potro arisco,
ou mesmo um asno bíblico e humilde
de onde continuarás com as sandálias tocando o chão.

Não sei se há música nesse teu caminho,
por isso não trouxe os atabaques de minha gente humilde,
que também foi tua, e que serviste.
Não trouxe o berimbau nem as cuícas
que, por certo, gemerão nessas malocas
uma dor mais antiga.

Cobriram-te com este barrete alvo
e até os pés desceram
as dobras do linho
e ficaste assim, um pouco sério,
neste pesar definitivo.

Não sei se os tempos são os mesmos
e o céu cristão permaneça antigo.
Creio que te darás muito bem com Deus,
que ficará coçando os picumãs eternos
da barba
olhando quadros teus.
Não sei se já criaram aí,
se é para aí que vais com tuas sandálias
e teu pano de linho, um ateliê para os pintores,
não me consta que esses ofícios
fossem bem vistos no céu.

Houve sempre alaúdes
eternamente afinados
para legiões de anjos afeminados.
Nunca soube de operários no céu,
e o que aí chegou, aquele da pedra,
virou leão-de-chácara.
Se os tempos forem os mesmos
e Deus reinar eternamente sobre os pobres mortais,
vais te dar mal
nesses confins de eterna luz
e nuncamais.

Andarás pelos corredores do empíreo
com teus cavaletes e teus quadros, espalhando
pincéis e borrifando o rosto absoluto
com essas manchas da terra.
Como poderão, ao lado do Altíssimo,
as tuas madonas negras
de rosto esférico
e olhar tristíssimo
ficar entre quérulos anjos tagarelas?

Depois os lixeiros do céu implicarão
com teus pincéis, se por aí não encontrares
um Fra Angélico, um Da Vinci
e mesmo, que será melhor,
um Van Gogh, um Picasso,
um Portinari ou Di Cavalcanti muito fogoso
com um batalhão de mulatas,
será dura a vida, se as coisas não mudaram.

Dizem que a censura no céu
é coisa dura. Tentaram reeditá-la na terra
e, por mais que dura fosse,
nunca chegou aos pés da coisa eterna.
Por cero implicarão com teu sorriso,
com teu vinho,
com o modo como pisas
e teu jeito de ficar
e ser sozinho.

Eu venho tocar as tuas mãos frias,
agitar o lenço
e ver a última vez tuas sandálias.
Não sei se para onde vais
ouve-se os ruídos da terra,
E se adianta encher-te de recados
Como se a morte te fizessem estafeta do céu.

Creio que estás fatigado da miséria humana,
das injustiças, das opressões,
e precisas descansar
de tantas e tantas peregrinações.
Por isso não te peço que incomodes
tua nova vida com suas coisas novas:
a casa que arrumar, uns cavaletes novos, os pincéis,
as telas, um lugar onde pintar,
se houver o que pintar, exceto o rosto de Deus,
nesse mundo exemplar.

Não te peço que incomodes a paz celestial
E chegues aí logo criando caso com reclamações
aos pés da Mãe-de-Deus,
que o Incriado fez para si,
temendo a solidão.
Não te peço que insultes o Absoluto com nossas querelas,
Isso é coisa que devemos resolver.
Não te peço que intercedas pelos injustiçados,
que peças luzes para os que governam,
que advogues pela família,
maldizendo o divórcio.
Estou certo de que isso é outro negócio
e cada um tem o governo
e a injustiça que aguenta.

Te conheci tarde
Como conheci Zé Décio, um dia antes de sua morte.
Mas venho tocar tuas mãos frias,
agitar o lenço
e desejar boa viagem.
Que se arrume logo a tua vida
nessas eternas paragens.
e que se abra uma individual no céu,
mal acabada a viagem.


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