quarta-feira, 28 de dezembro de 2016

DEPOIMENTO

   







DEPOIMENTO
                                  
                                              Aidenor Aires



Estive hoje em Anápolis para participar da Segunda FLANA (Segunda Feira Literária de Anápolis) promovida pela ULA - União Literária Anapolina. Fui convidado pelas escritoras Natalina Fernandes e Simone Ataydes. Esta edição da feira homenageia Cora Coralina, representando a procissão dos poetas mortos; e Sônia Maria Santos, com a leveza funda de sua poesia, tão querida de todos nós. Na estrada, hoje quase uma avenida que liga Goiânia a Anápolis, desviava, sempre que podia, o olhar do asfalto para lamber o verde das pastagens novas, as mangueiras frutescendo, os pássaros celebrando. Minha contemplação não pôde durar muito. É preciso retornar ao real de alcatrão do asfalto com seus bólides em vertigem, sob pena de alcançar, mesmo sem querer, as pastagens celestiais. Ainda tenho alguns garranchos por aqui. Penso que não posso sair assim, sem aviso prévio. Há ainda desculpas a pedir. Beijos a lançar. Há algumas palavras que querem voar. Outras agarradas à celulose, aspirando umas maquilagens, umas podas, um certo carinho que se deve ter para com os poemas que já não podem ser reescritos. Conformam-se com sua estação medíocre, no fundo das gavetas ou no mofo das caixas e silêncio das prateleiras. Mineralizados. Lá vou eu, incorrigível, deixando o assunto que importa e enveredando pelos desgalhados da narrativa. Pois bem, me comporto. Ia mesmo era para Anápolis. A maioria dos goianienses pensa que só se vai à antiga Santana das Antas para fazer negócio ou frequentar universidade. A cidade cresceu muito, mas não abandonou as ditas "coisas do espírito". A Feira fez questão de deixar isso bem claro. Músicos, contadores de histórias, oficinas de ilustração de HQ. Nas feições cênicas, bonecos, ventríloquos, oficina de poesia, apresentação folclórica, oficina de musicalização com material reciclável e por aí vai... Ao lado de tudo isso, mais música, encontro de escritores de livros infantis. Depois palestra sobre poesia, campo em que me atrevi deitar falas. É norma consuetudinária que o poeta só precisa de uma autoridade para falar de seu oficio. Ter vivido. Ter andado amarrado às engrenagens do mundo. Um dia é barro, outro molde, outro tijolo. Demorou nos sofrimentos, beliscou alegrias. Cantou desafinado, mesmo infeliz. Poeta e santo não são muito queridos pela felicidade. Assim fora, não seriam poeta nem santo. Foi com esta autoridade que conversei com a amável gente de Anápolis: artistas, professores, músicos escritores. Não invoquei a formação acadêmica, nem as insones leituras. Acabei falando de mim mesmo. Ou das coisas do mundo que conheci, engoli e depois assoprei, certo de que, apesar do mundo, as coisas de que falei tinham minha voz, meu encanto, meu alumbramento. Acho que me convenci e acabei convencendo outras pessoas que me abraçaram, me fizeram afagos e, sobretudo, me ouviram pela dura extensão de mais de uma hora. Falar de poesia rende boas narrativas. E aqueles que ouvem pensam que o poeta fala das suas vidas, de suas aflições e até de suas utopias, do amor possível, da paz e da imagem misericordiosa do ser humano. Mas o poeta fala é dele mesmo. Não pode ser incriminado, se as pessoas, seus companheiros de jornada, venham a crer que fazem parte de tantas angustias, penas e aventuras que vai tecendo à sua frente, num malabarismo onde se gasta seu ser de névoa e verbo. Distribuindo. Depois, retornando à lucidez intestina, fomos intimados a um almoço, num pequeno restaurante colhedor, onde a proprietária, talvez a cozinheira, servia o prato já feito, com aquelas comidinhas com cheiro e gosto de mãe. Não precisamos comer muito. Limpar os pratos. Podíamos apenas provar alguns bocados para sentir aquela saciedade exsudando calor de fogão e respiração de panelas. Tudo para lembrança. Felizes são essas pessoas que semeiam conhecimento beleza e sensibilidade, sem atrapalhar o furor dos automóveis, as engrenagens das indústrias, o tilintar das moedas no comércio e nos bancos. Entendi que essas coisas não precisam estar separadas. Fazem parte da mesma trama. Da mesma argamassa humana que luta, sonha e quer ser feliz.
Feliz, deve estar Cora Coralina, mineralizada nas areias do Rio vermelho, vegetalizada nos cajus, cajás e mangabas da serra, evanescente na bruma entorpecida de baunilha, coentro e manjericão dos quintais avoengos. Feliz, sei que está a poetiza Sônia Maria Santos, com seu caminhar de pluma entre palavras impiedosamente claras. Com a melodia de seu poema, a delicadeza inteira de seu gesto de ternura e inclusão. A manhã de hoje não terminou. Despertará outras manhãs que sonham alvorecer em Anápolis. E virão nas mãos de seus artistas, seus poetas, seus educadores. Estou certo de que virão.



                                                      Goiânia, 04 de novembro de 2016.


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