domingo, 24 de dezembro de 2017

A CARA DO NATAL

                                                    Aidenor Aires

Nestes dias, procuro fechar os ouvidos e os olhos aos risos e brilhos natalinos. Com o tempo, fui abandonando as crenças e a mitologia. Para mim, os deuses há muito se acabaram. Restam lembranças e alguns atavismos em cultos interesseiros e vazios. Para mim, só o que pensa sente, sofre e morre tem influência na vida e no mundo. Fui aprendendo que não há nada na terra que tenha sido construído por alguma inteligência ou determinação exterior ao mundo. Lição do poeta Lucrécio e de pensadores modernos que trilham os caminhos do humanismo. Natal, dizia Carmo Bernardes, é festa de cidade.  Realmente, concluo, que nos meus tempos de menino beradeiro dos barrancos do Rio Branco, oeste da Bahia, pouco me lembro desta festa, hoje tão mirabolante. Havia, é certo, lapinhas, talvez novena, ou outros ritos sertanejos, cópias do relambório esotérico do “latinorum” romano. Para o povo da roça, era época do milho verde, das pamonhas, do feijão de corda, dos frangos gordos e belos leitões. Mais do que devoção, salvo para as pessoas religiosas, era tempo de fartura. Lembrava mais as festas pagãs do solstício de verão, que a mídia e A dialética papal não conseguiram exterminar. Esse paganismo foi substituído por novas crenças, da globalização, das mídias ruidosas e das divindades mercadológicas. Vai cessando a invocação da manjedoura construída no imaginário cristão com seus animaizinhos, um berço de palha, reis e seres improváveis. Nos festejos da roça meninos não participavam. Não havia presentes. Quando muito, brinquedos feitos à mão. Lembro-me de bodoques, carrinhos de madeira, piões, fincas, berra bois, bola de leite de mangaba, recheada com ar de bexiga de porco. Nada de roupa nova, calçados e outros aguinaldos, hoje derramados sobre os desejos da meninada e exibicionismo dos pais. “O Zezé quis um tablet” Rosinha um celular, Maria uma boneca com pipiu ou perereca. É bom para as novas políticas de gênero. Já estão quase na idade de se decidirem pela opção sexual a ser gravada no registro de nascimento, que ainda está com um espaço “indefinido”.  A infância daqueles meninos não passava atoa. Poucos tinham acesso à escola e passavam os dias em trabalhos de ajuda aos pais. Dormiam em catres, um ao lado do outro. Não tinham privada patente, comiam o que a terra dava. Nunca recebiam salários e tinham pouco tempo para as atividades lúdica, depois que cumprissem as obrigações familiares. Talvez varrer o quintal, dar água ás criações da casa, capinar um eito de arroz. Depois de um prato de feijão pagão, um pedaço de rapadura que insuflava nas carnes e nos ossinhos tenros toda a sustança da vida. Verdadeiro trabalho escravo. Não era censurável porque assim viveram seus pais e nunca padeceram fome, nem falta de liberdade, nem miséria moral. Apreciam, isto sim, lições de amor à terra, à vida e a solidariedade. Natal, para mim, pouco importa. Dele recolho apenas algum sorriso, um abraço, um beijo da pobre gente esquecida, por um momento, de suas angústias, purgando-as no vinho, na cerveja, nos leitões, perus e rabanadas opíparas. Não precisam olhar lá fora. Afinal, aqui há tanta beleza, tanta música. Desfrutam com quem não tem futuro, porque imaginar, sonhar, ter fé não é construir. Falta nesses obreiros sentimentos humanos. Operam por consentimentos dos deuses que não estão na terra. Estão distantes e altos ignorando as alegrias ou misérias da terra. O Natal, para esta gente é um carnaval de máscaras místicas, caras piedosas e pio gestual. Recordam seus mortos e os guardam em algum paraíso, onde estão congelados, não padecem fome nem tristeza. Para mim, no correr da vida, fui descrendo desse imaginário, mitos fantasias. Respeito e honro quem assim crê. Afinal, tudo cabe dentro do homem, inclusive a crença em milagres. Retorno àquele tempo luminoso da infância sem censuras, aos passarinhos, às farturas da estação, à minha gente que nasceu, sentiu e sofreu, quase distante do comércio da fé e da tirania dos deuses.




Sítio Pachamama, Solstício de Verão de 2017

sexta-feira, 13 de outubro de 2017

COMPANHIA






COMPANHEIRA
                            Aidenor Aires

A morte nunca me foi estranha. Sempre companheira, desde os dias da infância. Colheu meninos ainda verdes dos pomares nos dias pueris, ameaçou-me com engodos e doçuras, e foi protelando, ao longo dos dias sua fome por mim. Talvez sobejasse meu corpo magro, minha insípida carcaça alimentada a beiju de mandioca e leite de cabra. Foi me deixando passar como sombra imperceptível. Cuidou de outros mais importantes, com mais sustança e haveres. Deixando-me de lado, foi, seletiva, carregando gente de melhor ossatura, musculação e massa cerebral. Assim me poupou a dor suprema, aleijão da espécie humana. E foi me entregando, aos poucos, seu cálice amargo. Levou o pai, a mãe, as irmãzinhas lactentes, parentes, aderentes e muitos da fraternidade dos amigos. Até gente distante, feridos de desastres e tragédias, foram arrastados, doendo em secura a cacimba dos meus olhos, os mananciais de minha alma pobre. Insidiosamente, quase impalpável, a velha senhora de trágica elegância e ferino trato, foi erodindo com sua presença o vazio do meu corpo e a sombra bruxuleante nele embarcada. Sempre procurou se disfarçar com passos sorrateiros ou surpreender com golpes imprevistos. Todas as subtrações não viraram perdas. Saíram do mapa visível e passaram a habitar meus recessos ocultos de lembranças. Daí emergem nas horas auroreais, nos crepúsculos plúmbeos, nas noites feéricas para exultarem em suas vidas de sonhos e lembranças. Como aqueles habitantes do Hades, padecem de corpo e substância, e só podem existir no afeto e na memória, e só podem falar nos lábios dos vivos que carregam suas histórias. Hoje estou, mais uma vez, sob o lancinante golpe da Velha Senhora.  Desta vez, ela percorreu os planos do sul do Brasil, galgou a Cordilheira dos Andes, esfriou sua adaga nas alturas geladas e foi pousar na terra generosa de Melipilla, doce e sísmico Chile. Sem consideração pela ternura e pela beleza, arrastou meu amigo, poeta Jaime Romanini Gainza. Ainda pouco estivemos juntos, aí na Terra dos Quatro Espíritos, rincão das frutas, das vides, dos vinhos e dos sempre louvados lácteos. Desde Goiânia, onde veio com uma delegação de sua terra para um encontro cultural, até sua província, nos encontramos várias vezes. Foi presidente do ATENEO Francisco Gonzales, instituição longeva com importante atividade cultural. Em todos os eventos a que comparecemos em Melipilla, me admirava sempre sua atividade, entusiasmo, contrastando com um comportamento calmo, amistoso e acolhedor. Falava em tom sussurrante, baixo, como costumam falar os chilenos. A última vez que nos encontramos, quando já me preparava para sair rumo ao aeroporto, sou alertado pela recepcionista do hotel. Lá estava Romanini, com uma esplêndida garrafa de pisco que me entregou como homenagem e lembrança. Ela ainda está aqui. Quando resolver toma-la, sem dúvida, estarei invocando a presença amiga e generosa do poeta. Descendente de italianos, trazia de seus antepassados muitas influências e de vez em quando escapava para a terra de Dante, em reencontro com suas raízes europeias. Empresário e líder cultural, era sobretudo poeta. Publicou vários livros, entre eles: Imaginária, Babel e Desdibujado, além de outros títulos e contribuições em jornais e revistas. Competente no uso da palavra, sua temática ia das preocupações teológicas, como em Babel; e à estuância do amor, liricamente extasiado entre a afeição e a morte. Esta foi mais uma vez e em que Ela vai podando meus brotos e ramos, vai ferindo meus galhos, talvez para que me recorde que ela está por aí vigilante e à espreita. Se de um lado e apequena, de outro infla meus alforjes de memória, onde passa a morar agora também Jaime Romanini Gainza.  Para lembra-lo, transcrevo alguns versos seus, onde parece visionário na percepção antecipada da morte.



COMPAÑIA


Muerte que que vienes a quedarte.
Muerte que vienes com gélido abrazo,
Muerte de mirada oscura.
eterna compañera.
Cambia tu ceño adusto
por uma suave sonrisa.
Baña com ternura
lo que alcance tu mirada.
Muerte que vienes a quedarte,
haz mas fácil tu llegada,
No olvides que nuestra companhia
dura tu vida entera.

HÁ LLEGADO

Mis huesos pesados,
mis músculos rígidos,
mi corazón no late.
La espera há terminado...
Aún siento los pájaros,
El viento y el sol,
Pero mi vista ya no ve,
Mi corazón no late.
Sin embargo... estoy tranquilo,
El fin de mi largo caminho... há llegado.


domingo, 1 de outubro de 2017



DESENCONTRO


Eu me sentei
apenas ao teu lado,
como quem fosse contar
a jornada que faz o rio.

Os seres precários
deslizaram nas palavras,
velhas folhas
ao desvario.

Também sem eco
o rumor sofria
sua parcela de esquecimento.

Lado a lado
apenas
para comungar a distância,
a mágoa medular do casario
devorada na torrente.




DISTÂNCIA


O amor já tem
sua janela vazia.

Por ali mira
sua perda
na vertigem
das estações decíduas.

À mesa, meu alimento
de distância.

E vai crescendo
nos arrozais do abandono
uma criança que brinca nesta ausência.




FLORES DO CERRADO


FLORES DO CERRADO
                           Aidenor Aires


Vida breve. Emoção roubada aos deuses. Padecem da dor imensurável da eternidade, eles. Nós, os que vamos morrer, podemos saudar esses lampejos, esses retalhos da permanência. Felizes de quase nada. Não digo do poeta, faminto de dias e horizontes. Paro e contemplo a natureza generosa que golpeia sem saber o rio do tempo, acendendo reflexos, cascatas, sombras, corpos boiando e retalhados reflexos de céu e sol. Vaga permanência. Na sequidão extensa do planalto, venham ver a sangria luminosa e exasperada da floração. Nem meus olhos, nem meus sentimentos, nem meu possível coração e seus estigmas pode suportar a abundância da beleza derramada na luminosa paleta do cerrado. Chega a ser injustiça, ou divina covardia. Como suportar o ipê roxo, de mística chaga, estender o seu quaresmal pálio sobre a mata decídua? Quer doer para além dos olhos. Pobre e estreito olhar. Quer ficar, passageiro, denso na lembrança. E quando vai espalhando no vento suas últimas pétalas bailarinas, parece provocação, um desafio ao irmão de juba amarela que estraçalha em ouro o ar pesado, o céu plúmbeo, ar do escaldado agosto. São apenas exemplares de luz sobreviventes, escapos aos machados, às motosserras, aos tratores. Gritam suas flores sobre tocos, leirões e arados, na ânsia de logo espalhar sementes que aspirarão iludir a morte e germinar para improváveis florestas do futuro. E mais que acenos agitados pelo vento geral, a intensidade amarela dessa florada, especialmente, são gritos, esgares que mancham o cerrado numa agonia anunciada. Fraquejo. Com toda minha escolaridade de pena e sofrimento coloco-me de joelhos frente a esta divindade singela. Deploro e me ponho a carpir, não os que hoje florescem, mas aqueles que não nascerão e não serão admitidos no dia possível de florescer. Bastaria minha lágrima, meu suspirar de pobre palavra e muita pena, não fosse a sucessão alvinitente das copas nevadas dos ipês brancos. Benzem, angelicais e núbeis, cerros ásperos, cerrados avermelhados, chãos calcinados de concreto e alcatrão. Apenas genuflexo, rente à terá, pode-se olhar, chamar e recolher este esplendor de alvura, inconcebível em terra tão sáfara de homens tão duros e amargos. Somente aí se esgota nossa sede de beleza e encantamento. Seria necessário, para não esquecer, olhar apenas o chão de avermelhado corpo, de desolada pele, de desertificado coração. Mas as árvores que amam a morte, porque sangram, parturientes, para o advento das sementes, e não confiam nas promessas dos verões e das primaveras, expõem suas estratégias vitais. Somente quem acompanhou o clamor dessas árvores cerratenses pode sentir, como um epílogo cantante da sinfonia vegetal, o estuar simultâneo da flor carmim do cega-machado e aquelas desenhadas em cabeleiras de amarelo sépia do feijão cru. Desapercebidas entre outras árvores, insignificantes durante todo o ano na paisagem, num repente, exibem seu estandarte de flores, num ritual que nasce e corre pelas seivas, desde as profundas raízes. Nelas não são galhos, mais subterrâneos nervos e raízes que florescem.  Pondero que essas flores são milagres fugidios. Ambicioso, talvez egoísta, anseio estar aqui ainda no próximo agosto, contradizendo a vocação de morte que escurece o mundo. Virei para celebrar esse milagre estupendo que, descuidados, ímpios deuses deixaram, perdulários, se espalhar em desperdício de luz pelo cerrado.

06/09/2017


quinta-feira, 9 de fevereiro de 2017

ZUT - UMA AVENTURA DA LINGUAGEM






ZUT – UMA AVENTURA DA LINGUAGEM

                                                                                               Aidenor Aires*



Há muito tempo venho acompanhando a aventura poética de Wilmar Silva ou Djami Sezostre. Para ler a poesia de Sezostre não se pode olhar parado, a partir de um ponto no alto, embaixo ou dentro. Seu (não) verbo instaura uma cena de signos multívocos, onde se amassam, se entranham, sem cercas ou horizontes.
            Nada que aprisiona, tudo que liberta. Em seu trabalho de estranheza singular, uma torrente que captura a totalidade dos sentidos, sem conter em cada um deles sua plenitude comunicativa. Em ZUT o poeta exorciza o discurso, a dicção e segue construindo (destruindo) o que sempre foi belo e consentido.
            Seu campo de exercício é o processo genético da linguagem. Inconformado com as limitações expressivas das palavras com sua carga de sentidos com/sentidos, ousa em desafios à ordem e à semântica. Recria seu próprio, silabário, vocabulário, fremente e instável, aventurando-se num mergulho até os embriões da linguagem.
Ao fragmentar o sacro edifício das palavras, talvez busque o momento primordial do silêncio, dos grunhidos, dos uivos e esgares. Visita a primitiva sintaxe de silêncio, onde dormitavam os signos primais dos gestos, dos gungunados, dos silvados, dos sons emitidos com dor, alegria e espanto, aprisionados em bocas rudes.
            Sob este aspecto seu texto é pura ousadia de formas quebradas e convoca o leitor de percepção plural a juntar fragmentos, amealhar possibilidades múltiplas de significações, participando do artesanato libertário que manipula descobertas verbais, interfaces idiomáticas, oferece sugestivos jogos e cativa os sentidos do leitor em vertiginosa viagem fractal.
            Muitas abordagens se poderiam armar no só edifício armazenado em seu grafismo poético. Ultrapassa a semântica unívoca ou meramente metafórica para inventar espaços, deslizamentos e ambiguidades de oráculo. ZUT não é somente um campo de exercício dramático e lúcido do poeta. É uma dádiva à consciência criativa do leitor/mirador/ouvinte/tátil e saboreante.
            A abordagem do texto que, em dado momento, pode se denominar leitura, não admite passividade. Todos os sentidos, mais a imaginação e a inteligência, são cativos para extrair sentidos, conferir significados, abandonando tudo o que sabia da poesia e da linguagem. Há momentos em que se quer ser criança e jubilar-se com sons inaugurais, gozar as primeiras silabas no prazer de executar o inocente instrumento da fala.
            Não se pode ler ZUT para conhecer um poeta e sua linguagem. Aqui tudo é inaugural, é desafiante e múltiplo. Infinitos poetas rabiscam papiros, tablas e écrans quando Djami Sezostre entrega sua missiva impessoal dirigida a uma geografia ainda por descobrir-se.
            Se o leitor pode atravessar a treda floresta da linguagem escrita, precisará de renovadas ferramentas para divisar o lado vertiginoso de sua performance corporal, onde Sezostre se entrega ao gestual, ao clamor cardíaco, à simiologia eloquente, à voz que entoa extreme as fronteiras entre o canto e a fala, entre o silêncio e o vagido.
            Na leitura sonora dos poemas Sezostre canta orfeônico, gregoriano e mântrico. Seguir sua arquitetura linguística nos aproxima de tantas vocalizações caras, felizes ou doloridas do ser humano. Difícil é comentar um aspecto em separado desse poeta múltiplo. A possibilidade compreensiva de seu trabalho só pode ser defrontada em sua complexa atuação de performer original.
            Seu texto/contexto não invoca apenas a dimensão da linguagem perceptível, nem sua humanidade inclusa, palpitante.  É preciso acolher sua construção imagética, onde o poeta se dá em vocabulário carnal, o corpo e a alma, capaz de pertencer panteisticamente a um universo de árvores feridas, bichos sofridos, terra e água. Areias, galhos e animais se misturam a uma herança de memória do chão, da casa, da família.
            A arte de Sezostre cresce em sua expressão multitudinária. Tudo que digo, nesta breve e simples abordagem, nada diz dele. Talvez todas as tentativas de recepção acabem por ser uma traição. O expectador tem sempre a última palavra, sua liberdade de conhecer e sentir. Estou certo de que ZUT reúne o mais alto acervo de sua invenção. Destaca-se como desenho original na poesia brasileira, ecoando diferente das mais descoladas experiências da linguagem.
 Embora dono de tão ampla linguagem, de tão inusitados recursos, de tão pungente clamor por comunicação e encontro, de uma certa forma é uma voz que clama na multidão e no deserto e, com certeza, segue cantando, indiferente e completo, como fala e canta, aos homens e ao mundo, poesia.

*Aidenor Aires, poeta, de Riachão das Neves, BA. Mora em Goiás, onde vive e escreve.




terça-feira, 7 de fevereiro de 2017





MPRÓDIGO

Minha mãe,
traga a candeia
de azeite
que me aclare
e alumie
a cama
em que me deite.

Minha mãe,
traga depressa
a luz extinta
da infância,
o pavio atiçado
de luz
sem esquivança,
que nunca se viu

em tão claro dia,

CANÇÃO DE ÁRION






DA MINHA ANTOLOGIA PESSOAL

CANÇÃO DE ÁRION
Se esta é a hora,
certamente outra não haverá
até a consumação dos dias.
Quando haverá um pranto
como este?
Quando meu corpo será repartido
Pelas bocas noturnas?

Enfraquece a carne, não morre a lira.
Deixa-me cantar.

Pousam nos seus olhos piracemas de
ouro,
pássaros em bando o recebem
como uma canção de plumas.
Certamente não haverá outra
Conjunção propicia,
Nem tanta dor junta derramando.

Daixa me cantar.

Deixa-me cantar.

sexta-feira, 27 de janeiro de 2017

CHEGUEI COM A CABEÇA PENDIDA/ Aidenor Aires





De minha antologia pessoal


  
Cheguei com a cabeça pendida

Cheguei com a cabeça pendida.
Flor decepada do mundo.
Cintilância do aprendizado para o abismo.
Orfeu irregressado, trouxe ainda sob as axilas cansadas,
o fardo do poema.

Aos deuses, ergo minha libação.
Aos deuses, que me fizeram rouxinol.
Subtraio-me disperso
e devolvo a canção que evola de minha carne,
das aras em cinzas,
e já ninguém comove.

Devolvo a todo o belo
o que, veloz, em mim brilhou
sem pressa
do sonho de cantar e ser completo.


UM POEMA DE ÍTALO CAMPOS


Da série: Poemas não publicados (veis)

   DA VARANDA



Ítalo Campos.
Marataízes, a 40 Km
Se avista d´aqui.



Como procissão, os vagalumes da cidade
Pirilampam num cortejo de festa
À rainha da noite.
Vejo o mar inquieto e sonante
A enviar para a praia as impurezas do dia e
Carregar para si meus sonhos.
O mar é salgado das lágrimas
Das mulheres de Anchieta e Lisboa
Pois o mar não está mais para peixes
E descobertas.
Oh, o mar que separa e une,
Reúne e atravessa.
Antes do mar avisto telhados curvos
Abrigando dor e saudades,
Quem sabe algum amor.
Sobre eles, o pára-raio e as palhas.
As palhas em balanço de guardar.
Sons do universo em voz de vento
Trança palhas em movimento.
Avisto pára-raio estático pronto
Para a tormenta.
Eu,
Eu que a natureza observo, amoroso,
Não tenho retorno, nenhum sinal,
Nenhum conforto em minha solidão
E dor. Existencial!
A noite segue longa gotejando
A breve vida inteira.



quarta-feira, 25 de janeiro de 2017

NOITE NA TAVERNA OU NOITE NO BOTECO

NOITE NA TAVERNA OU NOITE NO BOTECO
Ercília Macedo-Eckel
Para Luiz de Aquino
Uma Noite do Século XXI
Estamos na Praça da Cirrose, Boteco Bate-Papo, do Hamilton, no Setor Oeste, Goiânia. Criamos aqui uma roda literária acompanhada de petiscos e muita caipirosca. E não há como fugir das músicas interpretadas por duplas sertanejas goianas, para a tristeza de alguns de nosso grupo.
Depositamos nossos celulares numa cesta e, depois de algumas doses e conversas leves sobre musas, últimas leituras, etc., chegamos à morbidez dos assuntos políticos, da corrupção e outras mazelas que assolam o Brasil e o mundo: barbárie nos presídios - o quarto poder no país - Estados em falência, cheios de “elefantes brancos”, acidentes trágicos, soterramentos, aguaceiro, epidemias e surtos diversos. Finalmente, discutimos a degradação da política e dos costumes americanos na pessoa egocêntrica e narcisista do presidente Trump, recém-empossado. Agora, correm na mesa espetos de contrafilé, travessas de feijão tropeiro e de mandioca. E mais goles de caipirosca, antes das falas e reflexões de cada personagem sobre literatura.
Gabriel Ene
Nos últimos dias tem havido uma polêmica nas redes sociais sobre “literatura de boteco”. Seria a nossa, pejorativamente? Quem me ajudaria, aqui, a melhor conceituar ”alta literatura”, a formar o cânone dos supremos escritores-modelo, o arquétipo do bom gosto? Não me refiro ao “cânone didático” tão odiado pelos estudantes de nosso país e do qual muitas vezes fiz parte. Mas sim às várias listas propostas por escritores-críticos de renome internacional que visavam e visam à comparação e à análise de tudo o que fora escrito antes, preferencialmente desde Homero. Acredito, Miguel, que, nesse contexto, os afortunados leitores-críticos serão capazes de distinguir “literatura de boteco” de “alta literatura”. O problema é a carência de leitura por aqui.
Miguel Jota
Verdade, amigo! Sei as regras do jogo literário. Além de seu sentido lúdico, ativa a imaginação, a criatividade, como nosso jogo de bilhar nessa mesa. Minha maior preocupação é para que a bola-capítulo não se suicide e seja deletada, sepultada na lixeira. Daí minha diversidade: do campo das artes plásticas ao palco, do palco à literatura, como formas de driblar a realidade, “promovendo delírios, feito febre” nas “Copas e nas Cópulas”. Selma, os amantes dos bons escribas deveriam conhecer “Altas Literaturas”, de Leyla Perrone-Moisés, a fim de aprofundarem seus julgamentos de valor. Pois o melhor crítico é aquele que também cria textos. Quem cultiva jabuticaba fala melhor sobre jabuticaba, não é mesmo?
Selma
Peça aquela rabada ao molho. Dizem que é a melhor da cidade.
Conheço essa obra de Leyla Perrone e concordo com o que você acabou de dizer. E acrescentaria que o bom crítico analisa e discute o poema, o texto; não o poeta-autor, o escritor. Podemos considerar, ainda, que a diferença não está entre os vários conceitos de cultura, mas entre a “cultura e a descultura” de quem escreve e de quem julga o texto. E que há também o silêncio diante das grandes ( ou medíocres) obras de arte. Pois gritos, falatórios e ofenças ameaçam a literatura e o ato de criação, não é Mestre?
Jota Fernandes
Isso mesmo e mais: precisamos dessacralizar a literatura, levá-la aos botecos, torná-la profana, exposta. Isto é, abrir caminhos para produções emergentes e não canônicas. E, para julgá-las, melhor seria nos submetermos à categoria do escritor-crítico, aquele que, além de publicar suas obras – também faz crítica literária – depois de saber “tudo o que é, foi e será” até chegar ao Paraíso de um sábio julgamento. Concorda, Augustinha?
Augustinha
Sim, Mestre. Essa abrangência nos permitiria uma leitura comparativa dos temas, no tempo e no espaço, entre as diversas classes de escritores com os quais podemos aprender e apreciar vários aspectos da criação literária.
No Brasil temos uma deficiência séria, como já foi dito aqui. Mal lemos e escrevemos em nossa própria língua, diferentemente de países europeus, por exemplo, nos quais o escritor e leitor são fluentes em mais de uma língua. O conhecimento e a erudição vêm depois da leitura e da escrita ingênuas. Chegam com o tempo, a experiência e deixam para a posteridade a língua melhorada. Até mesmo aquele tipo de linguagem utilizada por um “escritor de boteco”, não é mesmo, Luís?
Luís
Deixe-me, antes, tomar um gole de caipirosca. Esse é para o santo...
Tenho refletido muito sobre isso nos últimos dias e cheguei à seguinte conclusão:
Se sou “escritor de boteco”, devo submeter-me à crítica sociológica, que tem como ponto de partida a expressão cultural e civilizatória de um povo, no caso os goianos, nas diversas fases do desenvolvimento desse tema (“literatura de boteco”) nas obras publicadas em Goiás. Isso, porque deve haver uma interação escritor-sociedade, ligada aos problemas de seu grupo; à língua, que é uma instituição coletiva; à mensagem e texto produzido, que devem ser de interesse do leitor, o qual vive os mesmos problemas políticos, sociais, financeiros, religiosos e éticos do autor. Dessa forma, percebemos que há uma pluralidade de enquadamentos na produção e leitura do texto literário, sendo o leitor um co-produtor, caso tenha a capacidade de captar-lhe o sentido.
Pessoal, nossa noite avança, chega a madrugada misteriosa, de anjos e demônios, bandidos. Cadê a saideira?
O Último Gole
Já estamos enxergando Dionísio com uma jarra transparente, cheia de vinho tinto: entre luz e trevas. Nossa máscara cai diante da epifania divina. Todos falamos ao mesmo tempo, num diálogo dramático. Impossível um fruidor que nos entenda, pois, nesse momento, retratamos uma sociedade fragmentada, egoísta, despótica, cuja língua se dispersa em confusão babélica, conforme as condições de sua produção no aqui e agora dessa saideira.
E quem se livra desse diálogo teatral? Praticamente todos falam ao mesmo tempo, perdem o foco, fogem do assunto, fazem digressões repetitivas e dificilmente aceitam o desvio.
Os mais alterados em suas falas já esperam um parente ou amigo, a fim de levá-los de volta para casa. De resto é só monólogo interior e, como nos mistérios gregos, entraremos em contato direto com o Outro-Mundo, aquele dos deuses.
Então até, leitores.
www.erciliamacedoescritora.com.br




PREMIO NOBEL PARA GABRIEL LNASCENTE
                                                                                Aidenor Aires*



Muita coisa se passou depois de janeiro de 1950, data em que emergiu e ganhou passos o poeta Gabriel Nascente. Nosso encontro se deu, pela primeira vez, por volta de 1958/59. Em 1958 havia falecido seu pai, Antônio Estrela Nascente, o Tonico Nascente, prematuramente, com apenas 36 anos de idade, deixando viúva D. Antônia Barbosa Nascente, com uma prole de Sete filhos, sendo Gabriel o quaro entre eles.  Mudaram-se, por algum tempo, para a Vila Nova, onde eu já vivia. Ali nos conhecemos ainda crianças. Hoje, ao completar 67 anos, o menino da rua 74, no antigo Bairro Popular, carrega na estrutura frágil e no olhar sempre ébrio de metáforas o luminoso peso de 50 anos, quase a vida inteira, de poesia. Haveria muito que falar de nosso reencontro e convivência nesse hiato de tempo, ou hiato de nossas vidas paralelas. Mas isto é assunto exorbitante para o mero registro que faço a pretexto da efeméride.  Desde o ano de 1964, nos corredores da ilustre Escola Técnica Federal de Goiás, herdeira da antiga Escola de Aprendizes e Artífices da Cidade de Goiás, até o dia de hoje, Gabriel não viveu um dia sequer sem poesia. Recordo-me de um dia, naquele ano aziago para o Brasil (64), que Gabriel nascente, após assistir a um espetáculo no anfiteatro da escola, se empolgou com a performance da trupe, principalmente com seus monólogos poéticos com temas contemporâneos enfocando os problemas do país, naqueles dias nervosos que antecediam o golpe de 1964. No dia seguinte, Gabriel, que vivia um início de adolescência conflitado e inquieto, apareceu na sala de aula com os rabiscos de um texto denominado Nordeste, sombra dos monólogos que presenciara na peça exibida no auditório da Escola. Pôs-se logo a recitar seu texto de intenção fortemente dramática, vociferando contra as mazelas do Nordeste, assunto muito em voga: seca, fome, severinos, carcarás, migração, etc. O diferencial era que, ao declamar o texto trágico, o poeta nascente, sem trocadilhos, exibia simiologia cômica, gestos grotescos, expressões faciais histriônicas que espantavam o pequeno auditório de sua sala de aula. A reação momentânea foi explosões de gargalhadas, aplausos e uivos da turba adolescente. A partir daí o menino que vivia correndo de bicicleta, comprando uma espingarda para atirar no bosque do Botafogo, construindo submarino para imergir nas águas do ainda limpo e piscoso Meia Ponte, subindo nos telhados do Bairro Popular e frequentando diariamente o departamento de orientação educacional e psicologia da escola, passou a dedicar-se à produção de poemas. Tinha muito próximos, este depoente que já rabiscava alguns versos e declamava os longos poemas de Castro Alves, Eduardo Jordão, um estranho mulato que também escrevia versos manquitolantes, apodado por Gabriel de “Touro”; além de professores intelectuais, como Bernardo Élis, José Lopes Rodrigues, Geraldo da Paixão, Jorge Félix de Sousa, Edmar Fleury, o orador espírita Niso Prego, professoras Maria da Cunha, Gilka Machado, lembrando apenas alguns. Na tipografia da escola descobriu o livro Primeira Chuva, de Bernardo Élis, Pássaro de Pedra e A Poesia em Goiás de Gilberto M. Teles, Contos para Ler de Pé, de Eduardo Jordão, Tardes do Nada de Edir Guerra Malagoni e a obra inaugural de Yêda Schmaltz, Caminhos de Mim. Nesse ambiente de efervescência política e cultural, Gabriel abraçou integralmente o partido da poesia. Dia e noite lia, escrevia e fazia contatos com escritores que ponteavam a cena goiana, indo dos consagrados aos emergentes do Grupo de escritores Novos, o GEN. A lavoura poética que iniciara em 1964, já havia produzido, no início de 1965, o opúsculo Os Gatos, trazendo apresentações de Bernardo Élis e Jesus Barros Boquady. Desde o insight inicial, o poeta não mais deu sossego a ninguém em constante furor poético e inadaptação à disciplina escolar. Submetido a exames psicotécnicos e psicológicos, o furor poético de Gabriel punha em pânico sua mãe, D. Antônia, e os orientadores e dirigentes da escola. O aparente desequilíbrio mental do poeta, frente ao que se entendia por normalidade, levou a escola, inspirada pelo professor Geraldo da Paixão, a encaminhá-lo a um profissional da psiquiatria conceituado em Goiânia. Após consultas, oitivas e procedimentos de sua ciência, o facultativo exarou peremptório: Não tem doença mental, nem transtorno psíquico. É poesia mesmo. Isto não tem remédio”.  A palavra do médico representou o habeas corpus, a ordem de soltura para o poeta e sua arte. Olhando o horizonte precluso de 50 anos vejo que Gabriel não envelheceu. Parece que seu corpo com apetite de passarinho foi ficando menor, mais frágil como maneira de acolher o menino, o arco da lira plangendo os vagidos da infância que não deixam de afligir a insônia do mundo. São mais de cinquenta livros, numa cascata crescente de indisciplina formal e saraivadas de símiles, polissemias, animismos, metonímias, hipérboles e metáforas. A vida escorre em pura linguagem. Em todo o discurso, o peso das longas interjeições e aflitas interrogações. É uma fala incansável de descobertas e espantos. Linguagem de pouca alegria e muito sofrimento. Sem poder ser outra coisa, esgota-se em pura poesia. Os problemas do mundo, o sofrimento dos homens, as perdas da infância permanente, as paisagens, as cidades e os amores estão sempre aí, na sua palavra de inflamação enferma, captados de uma forma mediúnica, abraçam uma realidade para além do real, ou cria um real arquetípico, num tempo de total isenção, e impertencível. Suas intensas leituras de inúmeros autores marcam aqui e ali, o mapa das influências confessáveis que alimentam o caudal de sua criação. No fundo, porém, de sua floresta de signos vão se debatendo plangentes significados e busca da forma visível de sua expressão. Canta a liberdade total, uma quase escrita automática que expõe, depõe, exalta e demole parâmetros lógicos, estéticos e técnicos da elaboração poética. Amado, admirado e, não raro discriminado, punido em sua poesia por ser quem é, o poeta assombra e enche de luminoso talento nossa época sem valia. Sua sensibilidade porosa absorve e transfigura as aflições do mundo e dos homens. Transmite, numa compreensão simbólica a descrença, o horror, o predomínio do mal e da insensibilidade, a falência do sonho humano.  Mais de cinquenta livros atestam sua permanente insatisfação, como se dissesse que não basta um poema, nem dez, nem cem, nem mil poemas. É necessário um rio, um oceano, uma galáxia de poemas dirigidos talvez a leitores do futuro. Gabriel ultrapassa, por sua estranheza, o conceito acadêmico do poema e abre espaço para indagações multidisciplinares de sua produção. No veículo de sua vasta produção editada traz o testemunho avalista de grandes nomes da literatura contemporânea que, certamente não lhe dedicariam comentários e fartos elogios se sua obra não merecesse deles o inteligente acatamento. Nem merecia ele os prêmios que arrebanhou. Gabriel nestes cinquenta anos de cantos e jeremiadas eleva a poesia ao patamar de ofício divino, como sempre fizeram, os vates e aedos. Por tudo isso, só podemos compreender sua poesia como mistério e sua voz como profecia.  Mesmo que ainda torçam o nariz para sua figura frágil com ar de desamparo, mesmo que não chegue à Academia Brasileira de Letras, Gabriel merece o Prêmio Nobel. Não há no Brasil, nem na literatura conhecida uma voz tão autêntica, tão pura e original a noticiar o drama do homem, no que tem de local, contemporâneo, globalizante e universal.  Celebro beleza de sua poesia. Celebro a riqueza e o encanto de sua obra.  Conclamo as inteligências e as instituições culturais e políticas de Goiás, como homenagem lídima, nas comemorações desse meio século de inspiração e canto, a indicação de seu nome para o próximo Prêmio Nobel de literatura.  Isto honra o poeta. Isto honra nossa terra e nosso tempo.



·         Aidenor Aires – escritor, membro da Academia Goiana de Letras e Instituto Histórico e Geográfico de Goiás.

NAZARENO CONFALONI ENTRA NO CÉU





NAZARENO CONFALONI ENTRA NO CÉU
                                                          Aidenor Aires

(Poema escrito em homenagem a Frei Confaloni, na ocasião de sua morte, em 04 de junho de 1977. Hoje, data de seu nascimento, comemora-se também seu centenário.)


Te conheci tarde
como conheci Zé Décio, um dia antes de sua morte.
E te vejo agora,
anjo barroco e rotundo
despojado de asas
 e sério.

Cobriram tua humildade com linho,
com este barrete alvo
e eu venho tocar tuas mãos frias,
agitar o lenço
e ver a última vez
as tuas sandálias.
É certo que, ser impuro, não sei os teus caminhos,
Por isso não trouxe um bornal de paçoca,
Um quarto de rapadura e uma moringa de água.
Não sei se é permitido bagagens
nem farnel
para onde vais, assim, definitivo.

Não sei se passarás a nado
um lago escuro e precises de uma candeia de cera
em tua sombra.
Não sei se te espera um barco, um potro arisco,
ou mesmo um asno bíblico e humilde
de onde continuarás com as sandálias tocando o chão.

Não sei se há música nesse teu caminho,
por isso não trouxe os atabaques de minha gente humilde,
que também foi tua, e que serviste.
Não trouxe o berimbau nem as cuícas
que, por certo, gemerão nessas malocas
uma dor mais antiga.

Cobriram-te com este barrete alvo
e até os pés desceram
as dobras do linho
e ficaste assim, um pouco sério,
neste pesar definitivo.

Não sei se os tempos são os mesmos
e o céu cristão permaneça antigo.
Creio que te darás muito bem com Deus,
que ficará coçando os picumãs eternos
da barba
olhando quadros teus.
Não sei se já criaram aí,
se é para aí que vais com tuas sandálias
e teu pano de linho, um ateliê para os pintores,
não me consta que esses ofícios
fossem bem vistos no céu.

Houve sempre alaúdes
eternamente afinados
para legiões de anjos afeminados.
Nunca soube de operários no céu,
e o que aí chegou, aquele da pedra,
virou leão-de-chácara.
Se os tempos forem os mesmos
e Deus reinar eternamente sobre os pobres mortais,
vais te dar mal
nesses confins de eterna luz
e nuncamais.

Andarás pelos corredores do empíreo
com teus cavaletes e teus quadros, espalhando
pincéis e borrifando o rosto absoluto
com essas manchas da terra.
Como poderão, ao lado do Altíssimo,
as tuas madonas negras
de rosto esférico
e olhar tristíssimo
ficar entre quérulos anjos tagarelas?

Depois os lixeiros do céu implicarão
com teus pincéis, se por aí não encontrares
um Fra Angélico, um Da Vinci
e mesmo, que será melhor,
um Van Gogh, um Picasso,
um Portinari ou Di Cavalcanti muito fogoso
com um batalhão de mulatas,
será dura a vida, se as coisas não mudaram.

Dizem que a censura no céu
é coisa dura. Tentaram reeditá-la na terra
e, por mais que dura fosse,
nunca chegou aos pés da coisa eterna.
Por cero implicarão com teu sorriso,
com teu vinho,
com o modo como pisas
e teu jeito de ficar
e ser sozinho.

Eu venho tocar as tuas mãos frias,
agitar o lenço
e ver a última vez tuas sandálias.
Não sei se para onde vais
ouve-se os ruídos da terra,
E se adianta encher-te de recados
Como se a morte te fizessem estafeta do céu.

Creio que estás fatigado da miséria humana,
das injustiças, das opressões,
e precisas descansar
de tantas e tantas peregrinações.
Por isso não te peço que incomodes
tua nova vida com suas coisas novas:
a casa que arrumar, uns cavaletes novos, os pincéis,
as telas, um lugar onde pintar,
se houver o que pintar, exceto o rosto de Deus,
nesse mundo exemplar.

Não te peço que incomodes a paz celestial
E chegues aí logo criando caso com reclamações
aos pés da Mãe-de-Deus,
que o Incriado fez para si,
temendo a solidão.
Não te peço que insultes o Absoluto com nossas querelas,
Isso é coisa que devemos resolver.
Não te peço que intercedas pelos injustiçados,
que peças luzes para os que governam,
que advogues pela família,
maldizendo o divórcio.
Estou certo de que isso é outro negócio
e cada um tem o governo
e a injustiça que aguenta.

Te conheci tarde
Como conheci Zé Décio, um dia antes de sua morte.
Mas venho tocar tuas mãos frias,
agitar o lenço
e desejar boa viagem.
Que se arrume logo a tua vida
nessas eternas paragens.
e que se abra uma individual no céu,
mal acabada a viagem.


domingo, 1 de janeiro de 2017

NESTAS FESTAS DE FIM DE ANO








NESTAS FESTAS DE FIM DE ANO


Nestas festas de fim de ano

cumprimos solidárias promessas,
sonhos humanos de estima fraterna 
e desinteressado amor.
Invocamos os mitos amorosos de esperados profetas,
crentes nas possíveis manhãs para renascer.
Por momentos, enquanto é farto o pão,
embriagante o vinho,
infinitas as luzes,
vivemos dias sem remorsos.
Não estão à nossa mesa os desterrados do mundo,
os desertados do amor.
Não vêm à ceia abastada
os miseráveis das ruas, os refugiados sem abrigo.
Nossos gritos de exaltação,
nossas salvas e vivas não incluem a mudez 
que cala a injustiça.
Fazemos votos de amor perene
e de perene encontro de corações e almas.
Nada disso nos absolve.
Nada nos conduz
à utopia original que desenhamos
no abandono humilde de uma manjedoura de Belém.
Nada disso nos comove mais.
E de alguma cruz de atroz e luminosa memória 
amanhã, outra vez, conciliados,
NOS ESQUECEREMOS
.

PAPAGAIO REAL, VOLTAR PARA PORTUGAL!





PAPAGAIO REAL, VOLTAR PRA PORTUGAL!





   Neste início do na de 2017, deixando em esforço de esquecimento o que se finda, cabe algumas reflexões sobre enfermidades teimosas que acometem o corpo do Gigante deitado. Uma vez, nos tempos da última ditadura, assisti à palestra de uma alta patente do regime, egresso da Escola Superior de guerra. A conferência fazia parte da disciplina Estudos de Problemas Brasileiros, então em voga nas universidades. Após desfiar com entusiasmo argumentos geopolíticos, território de configuração continental, riquezas estratégicas, e demais itens pertinentes à disciplina nomeada pelo sueco Rudolf Kjellén, demorou no quesito população. Concluiu, em minúscula síntese, digo eu, que todos esses aspectos de base material eram favoráveis e, ufano, exaltou esses infindáveis, infinitos e disponíveis recursos a serem mobilizados para alavancar o despertar do Gigante sonolento. Havia, porém, um entrave. A dúvida sobre o homem brasileiro. Não se tinha certeza sobre a viabilidade desse estranho ser vindo de uma colonização criminosa, do estupro e do massacre dos indígenas, do sangue da escravidão. Nem mesmo a mestiçagem que se formou depois podia dar certeza das faculdades de progresso dessa heterogênea formação humana. Partilhava o conferencista de ideias comuns a estrangeiros e brasileiros. Aquelas de que o homem brasileiro, como produto infeliz de uma miscelânea étnica cultural, estava fadado ao fracasso e, possivelmente com ele, o país. Não quero dar razão àquele teórico autoritário filiado a o euro centrismo excludente e preconceituoso. Mas, os primeiros cronistas informam que os portugueses que aqui vinham buscar riquezas, tinham como objetivo levar o que podia para Portugal. Pau Brasil, ouro, pedras preciosas, animais, plantas, açúcar, suor e sangue humano. Não queriam criar raízes e só defendiam a terra quando suas riquezas eram ameaçadas, ou corriam risco as fronteiras da fé e do Império. Brasileiro não podia ter escola, livro, estradas ou poder de decisão. Como herança desse desamor inicial, parece que herdamos e continuamos cultivando um ferrenho desamor por esta terra. Pelo menos a maioria da elite que tem poder. Apropriam-se do que tem o país, das riquezas naturais, daquelas produzidas pela transformação industrial e, o que parece pior, apropriam-se dos sentimentos e dos sonhos da população. Como os portugueses, ensinavam aos seus louros: “Papagaio real, voltar para Portugal. Desprezo nauseante cultivam pela terra e a gente. Enriquecem na esperteza, confundem o público com o privado. Pouco se importam com a miséria, a fome, a ignorância. Se possível, aproveitam-se dessa condição das extensas massas miseráveis, dedicando a elas um paternalismo subjugante, mantendo assim clientela permanente de suas ambições gamonais. O brasileiro, tratado por diversos rótulos redutivos, como preguiçoso, malandro, “safadão”, lubrico, abestado, em suma, irresponsável, sofre a contínua lavagem cerebral que o leva a aceitar como normal, e até motivo de orgulho a ser mostrado e exportado. A baixa estima, o coitadismo, o cinismo ou o histrionismo passam a ser características exaltadas pela mídia, pela publicidade, pela moda e, claro, pela política. Basta ver os apodos dos candidatos nas eleições. E os que são eleitos. O jogador de futebol analfabeto, o que nunca leu um livro e vira presidente. O religioso inculto, o policial criminoso, o traficante, e até o abestado ou qualquer poste. A gente sem auto estima, acostumada a fazer rir ou rir de si mesma. Acha normal essas escolhas, porque, em fim, escolhe alguém igual a si mesmo. Dele se cobra apenas o espetáculo, o carnaval, a torcida histérica. Neste cenário não há lugar para pensadores, professores, cientistas e estudiosos. São esquecidos, desestimulados e só são reconhecidos, muitas vezes, depois de serem consagrados no exterior. Não queria ir por esse caminho pessimista. Não penso que a população brasileira se divida em lesos e aproveitadores. No correr do tempo negou-se a nossa gente oportunidades, educação, tratamento digno, cevando a baixa estima que faz nossos filhos fugiram para outros países exercitarem ofícios degradantes, clandestinos e humilhantes. Quando voltam, com alguns dólares, sentem-se maiores, mais gente, mais feliz - superiores. Nunca concordei com esse desenho do brasileiro. Passei minha vida observando, discutindo nossa cultura, sondando nossas identidades. Como fruto mestiço da exclusão,o que vejo é resistência. É luta desigual. Poucos têm tudo. Enchem as burras e depositam em contas nos paraísos fiscais. Lavam dinheiro em fazendas, boiadas, leilões e laranjais, que não produzem frutas, mas usufrutos. Não fora a Lavajato, jamais saberíamos a extensão do saque, do esbulho, do parasitismo que as chamadas elites políticas praticam contra a nação. Para eles, de riso alvar, caras recauchutadas e cabelos tingidos, nós somos o rebanho a ser tosquiado, sangrado, abatido. Cabe a nós demonstrar o contrário. Não deixar morrer o trabalho do juiz Moro, dos procuradores do MP, da Polícia Federal e dar a resposta à súcia, não só na indignação das ruas, mas no recôndito das urnas, exigindo inclusive dos partidos, a explicitação de seus programas e a seleção dos candidatos que impingem ao eleitor. Penso que este país já não é o mesmo. E que já estamos autorizados a ter alguma esperança.